Artigo do
Jornal Publico da autoria de Alexandra Prado Coelho, publicado a 2 de Fevereiro
de 2019, com o título Os
ecrãs impedem os jovens de desenvolver empatia. E as sociedades tornam-se
"brutais":
A resiliência constrói-se.
Num ambiente de segurança, o cérebro de alguém que sofreu um trauma regenera-se
“muito mais rapidamente do que imaginamos”. Mas, atenção, avisa o psiquiatra
Boris Cyrulnik, uma criança que cresce a olhar para ecrãs não consegue desenvolver
empatia.
A nossa capacidade de resistência à adversidade – a
chamada resiliência – não está inscrita nos genes. Não nascemos com uma
determinada predisposição, antes somos moldados pelo ambiente desde o útero
materno e pela vida fora, e é isso que nos torna mais ou menos resilientes.
O defensor desta ideia, o neuropsiquiatra francês Boris
Cyrulnik – que esteve em Portugal esta semana para fazer uma conferência na
Noite das Ideias, iniciativa da Embaixada de França e do Instituto Francês, dia
31 de Janeiro, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa – sabe do que fala.
Ele próprio é um exemplo de resiliência e tornou-a o tema principal das suas
pesquisas e do seu trabalho de toda a vida.
Hoje com 81 anos, este sobrevivente do Holocausto tem
trabalhado com pessoas, sobretudo crianças e jovens, que passaram por situações
traumáticas. “A resiliência”, diz, “é uma construção constante, é um fenómeno
de desenvolvimento e nós desenvolvemo-nos o tempo todo, a nível biológico,
psicológico, afectivo, social.” E acrescenta, com um sorriso de garoto: “Só
paramos de nos desenvolver aos 120 anos. Depois disso, é possível, mas é
difícil.”
Muito do processo de regeneração de um cérebro que
sofreu um trauma passa pela segurança mas também pela empatia com os outros.
Ora, actualmente, com a presença constante da tecnologia nas nossas vidas, é
precisamente a capacidade de criação de empatia que começa a estar em risco. E
que consequências isso tem para uma sociedade?
"Uma pessoa nunca
pode ser reduzida ao seu trauma"
Antes
de entrarmos por aí, vamos começar por perceber o que pode afectar, positiva e
negativamente, o nosso cérebro desde o início da vida. O poder dos genes, ou
seja, o determinismo genético, tem o seu momento alto “no encontro do
espermatozóide com o óvulo”, depois disso é o meio que começa a agir sobre o
jovem feto. “Há meios que orientam [a criança] para a aquisição de factores de
protecção e outros para a aquisição de factores de vulnerabilidade. Se a mãe
está stressada, segrega substâncias que passam no líquido amniótico e o bebé
adquire esses factores de vulnerabilidade. Se a mãe se sente segura e feliz, o
bebé desenvolve-se bem e tem factores de protecção.”
A forma como, por exemplo, essas substâncias
segregadas pela mãe alteram o cérebro do bebé pode ser observada em exames
neurológicos. As crianças afectadas pelo stress materno “nascem com uma
alteração dos dois lóbulos pré-frontais e do sistema límbico e a amígdala do
cérebro reage muito fortemente”. Isto significa que “chegam ao mundo com uma
alteração cognitiva pela situação de precariedade social da mãe”.
Um ambiente onde a criança se sinta protegida é, por
isso, essencial. A boa notícia é que “o cérebro regenera muito rapidamente”.
Mesmo um trauma profundo pode curar-se “muito mais facilmente do que
imaginamos”. A consciência disso deve-se, em grande parte, ao trabalho que
Cyrulnik desenvolveu. “Antes dizíamos sobre estas crianças, é genético, não
vale a pena preocupar-nos com elas. E não nos ocupávamos. Hoje rodeamo-las de
segurança e a resiliência regressa. Em 48 horas começam a segregar hormonas de
crescimento e hormonas sexuais, sejam masculinas ou femininas. Mas se não os
rodearmos de segurança passam a vida toda em sofrimento”
Boris Cyrulnik tinha sete anos quando perdeu os pais,
levados pelos nazis para Auschwitz, onde morreram. Antes de ser detida, a mãe
confiou o rapaz a uma família, que acabou por o entregar também aos alemães.
Conseguiu escapar, escondendo-se numa sinagoga, da qual acabou por conseguir
fugir, tendo trabalhado numa quinta para conseguir sobreviver até ao final da
guerra. Só aos dez anos é que foi entregue a uma família que o criou.
Depois disso, as tentativas que fez para falar da sua
situação depararam com um muro de indiferença. Os franceses não queriam ouvir,
da boca de uma das vítimas, a história de como tinham abandonado e condenado à
morte crianças judias. Num país também ele profundamente traumatizado, Boris
Cyrulnik percebeu que não valia a pena insistir em contar a sua história. Mas
foi também esta experiência que o fez perceber que queria ser psiquiatra.
A ideia de que uma criança, por maior que seja o
trauma que sofreu, não pode ser ajudada a ultrapassá-lo é o que mais o indigna
– e, trabalhando com órfãos na Roménia, vítimas de genocídio no Ruanda, ou
crianças-soldado na Colômbia, foi reforçando essa convicção. “Uma pessoa nunca
pode ser reduzida ao seu trauma”, costuma dizer.
Há, contudo, outros factores que devem ser tidos em
conta – a diferença entre rapazes e raparigas, por exemplo, que se nota logo no
desenvolvimento nos primeiros anos de vida. “As raparigas começam a falar cerca
de cinco meses antes dos rapazes. Porquê, não sei. Mas é um factor de
protecção, porque quando estão infelizes podem dizê-lo, podem pedir ajuda,
enquanto os rapazes não sabem dizê-lo e passam à acção mais rapidamente.” Passagem
à acção que vão manter como característica de comportamento ao longo da vida.
Quando chegam à adolescência, “as raparigas, que têm
uma biologia mais estável, têm um avanço neuropsicológico de cerca de dois anos
relativamente aos rapazes”. Não só falam melhor, como são “mais estáveis
emocionalmente” e já terminaram a sua “fadiga de crescimento”.
Nas décadas seguintes,
nota-se que as raparigas e as mulheres “aprendem os rituais de interacção
melhor que os rapazes” e continuam a “dominar a palavra” – se isso ainda não
parece ser evidente no espaço público, onde a visibilidade das mulheres
continua a ser menor, Boris Cyrulnik acha que é apenas uma questão de tempo:
“Há aí [nessa invisibilidade] um grande determinismo social. Mas penso que isso
vai desaparecer em dez anos”.
O domínio masculino no espaço público está ligado à
força física e à violência. “A violência foi um factor adaptativo em todas as
culturas. Muitos sociólogos dizem que é pela violência que a sociedade se
constitui. Se os homens não fossem violentos, a espécie humana teria
desaparecido”.
Na sua infância e juventude, durante a II Guerra
Mundial, “o trabalho era uma forma de violência, 15 horas por dia, seis dias
por semana”. Recorda as vidas duríssimas dos mineiros em França ou dos
operários dos estaleiros navais. “Era um trabalho de uma violência extrema, os
operários tinham as costas feridas pelos pedaços de carvão que lhes caiam em
cima, as mulheres tinham que os lavar para evitar as infecções e para que eles
pudessem ir trabalhar no dia seguinte, senão, não haveria dinheiro nem comida.”
A força e a violência eram, portanto, essenciais e
isso fazia com que os homens fossem “vistos como heróis”, sendo, por isso
mesmo, “sacrificados na mina ou na guerra”. Esta violência adaptativa não faz
sentido nas actuais sociedades ocidentais como a europeia, por exemplo, mas
continua a fazer sentido em países em guerra. A diferença é clara: “A violência
é destruição num contexto de paz mas é construção social num contexto de
guerra”. Daí que no Médio Oriente “um rapaz que não é violento, é desprezado,
pela mãe, a mulher, os outros rapazes”.
“No mundo actual [ocidental], o sector terciário
desenvolveu-se, a escola também, as mulheres têm desempenhos iguais ou
superiores aos homens e a violência já não tem valor de construção da
sociedade, é apenas destruição”, explica. “Mas isso só acontece desde os anos
60 do século XX. Eu nasci em 1937, faço parte de uma geração na qual apenas 3%
das crianças estudavam. Os outros iam trabalhar, com 12, 13 anos, os rapazes para
a mina, as raparigas para casa, e a maternidade acontecia aos 16, 17 anos. Hoje
isso é impensável.”
E, no entanto, mesmo que desadaptada ao contexto
actual, a violência contínua de certa forma inscrita na nossa “memória
transgeracional” – pronta a renascer assim que for necessária. “Acontece nas
sociedades que se afundam, por exemplo, o Brasil, a Venezuela, que estavam numa
curva ascendente e a violência era muito combatida, sobretudo pelas mulheres,
porque se manifestava apenas na destruição do casal, da família, da sociedade.”
Quando a crise económica faz afundar o país, “a violência reaparece e torna-se
um valor adaptativo e nesse contexto um homem que não é violento é
imediatamente eliminado”.
Ao longo da sua carreira, Cyrulnik viu muitas
situações nas quais esses instrumentos de adaptação da espécie humana vinham ao
de cima, tanto a violência como, por outro lado, a solidariedade. E percebeu
que são valorizados de forma diferente conforme o contexto. No entanto, nota, a
solidariedade que surge nessas circunstâncias é geralmente “de clã, de grupos
com as mesmas crenças religiosas, a mesma cultura, a mesma cor de pele, o mesmo
nível social”.
Quanto à violência, “nas guerras condecoramos os
psicopatas quando matam um adversário, e em alturas de paz colocamo-los na
prisão – eles são sempre psicopatas, é o meio que valoriza, ou não, a passagem
ao acto”.
Esta
presença da violência, que “atravessa todas as culturas”, ajuda a perceber
também a vitimização da mulher. “Elas sofreram, foram massacradas, porque são menos
dotadas para a violência”. Por outro lado, quando a situação piora e a
violência se torna novamente adaptativa, “as mulheres valorizam os homens
violentos e querem estabelecer laços com eles”. O que acontece hoje, em
contextos de paz, é que “as mulheres, que foram de facto vítimas, e algumas
ainda são, servem-se da noção de vítima para tomar o poder e legitimar a
própria violência, que não é física, mas verbal”.
O bebé “precisa do
cheiro” da mãe
Está
também a surgir nas nossas sociedades outro fenómeno que preocupa o
psicanalista: a dificuldade de desenvolver empatia, que afecta sobretudo os
mais jovens. A empatia é algo que implica interacção humana, sublinha. E quando
grande parte da relação com o mundo é feita não através de outros seres humanos
mas sim de ecrãs de televisões, computadores ou telemóveis, é muito mais
difícil aprender a empatia.
E, no
entanto, esta é algo que um bebé recém-nascido adquire com uma surpreendente
facilidade. “Os bebés compreendem imediatamente a menor variação da mímica facial
da mãe, desde muito pequenos. Somos uns virtuosos, únicos entre as espécies
vivas a lidar com a mímica facial.” Daí que seja difícil criar um robot que
possa realmente substituir uma pessoa.
Mas,
relativamente à tecnologia, Cyrunik não tem uma posição redutora. “Tinha um
amigo com uma clínica de hemodiálise e duas ou três vezes por semana as pessoas
dormiam na clínica e criavam laços com a máquina, queriam sempre a mesma porque
já conhecia as reacções deles. Como na psicanálise, havia uma relação transferencial.”
Por outro lado, “quando as crianças são criadas com
ecrãs, são privadas da interacção, das palavras, do piscar de olhos, dos
sorrisos; com um ecrã não há rituais de interacção”. Isso faz com que “tenham
um atraso no desenvolvimento da linguagem quase como uma criança autista, não
sabem descodificar as interacções, se alguém lhes sorri não compreendem, não
aprendem os pequenos gestos que nos permitem viver juntos, socializam mal,
tornam-se impulsivos”. Um bebé, frisa Cyrulnik, “precisa do cheiro, do calor
dos braços da mãe”.
Se um bebé “é isolado antes de adquirir a palavra, o
que acontece até aos 21 meses, há uma atrofia dos lóbulos pré-frontais e dos
anéis límbicos”. São crianças que crescem “com um cérebro moldado pelo fracasso
social e cultural” e “não conseguem controlar as suas emoções”.
Por isso, a ligação que muitos jovens (e não só)
estabelecem hoje com esses ecrãs omnipresentes preocupa-o. “Já há
consequências. Os jovens que passam mais de três horas por dia em frente a
ecrãs mexem-se menos, encontram-se menos com os outros, têm mais depressões e,
sobretudo, param o desenvolvimento da empatia – a aptidão a descentrarem-se de
si próprios para conseguir a representação do mundo mental dos outros”.
A ausência de empatia manifesta-se, diz Cyrulnik, na
forma como muitas pessoas “não estão atentas aos outros”. “No metro de Paris,
por exemplo, isso é flagrante. Estão no meio da porta e não se mexem quando os
outros querem entrar ou sair. Estão centrados neles mesmos porque a escola
centrou-os sobre eles mesmos, os ecrãs também e aprenderam mal os rituais de
interacção”.
O exemplo do metro pode ser menor, mas Cyrulnik
confirmou esta constatação noutras situações mais graves. Recorda um rapaz que,
no hospital e quando uma pessoa da família acabara de morrer e os outros
familiares choravam, ria a olhar para alguma coisa no telemóvel. Ou outro que
assaltara uma senhora que caíra acabando por morrer em consequência de uma
pancada na cabeça e que respondia apenas que “se ela tivesse largado a mala não
teria morrido”.
"Sociedades
brutais"
Uma
sociedade com menores níveis de empatia é necessariamente mais perigosa,
conclui. “Os psicopatas podem matar, roubar, violar, sem culpabilidade”. Por
isso defende a necessidade de se desenvolver uma “pedagogia da empatia”, que
deve começar nas escolas, para explicar que “não nos podemos permitir tudo”.
Tal como é preciso perceber que “se um rapaz tem um desejo sexual não pode
permitir-se tudo”, também uma rapariga que não esteja interessada nele “não
pode permitir-se tudo, não pode humilhá-lo”.
Conseguirmos
colocar-nos no lugar do outro – é isso a empatia e também, segundo Cyrulnik, a
base da moralidade – ajuda a perceber que nem tudo é possível. “Temos, como
sociedade, que ter uma maior consciência disso”. Em França, após a I Guerra
Mundial havia um enorme número de órfãos e “praticamente todos conseguiram
rapidamente uma família de acolhimento”. Hoje, nessa mesma França, em paz,
“passam 16 meses entre o alerta de que uma criança está em risco e o momento em
que vai encontrar uma família, e são 16 meses em que a criança é infeliz”. A
ausência de empatia, avisa, “faz sociedades brutais”.