domingo, 27 de outubro de 2013

ENTREVISTA a José Luis Pio Abreu



Entrevista de Marta Vaz ao Psiquiatra José Luis Pio Abreu, publicada a 13.10.13 no site Focus Social, com o título Há uma tendência para psiquiatrizar a sociedade. E isso é tremendo!"
“Diz que uma pessoa triste, não está obrigatoriamente deprimida e que a birra de uma criança não tem de ser um comportamento desviante! E chama à atenção para a tendência de psiquiatrizar a sociedade, rotulando e corrigindo apressadamente qualquer desvio. Defende que dizer doenças comportamentais em vez de doenças mentais ajudaria a compreendermos melhor o que são e explica porquê. Valoriza a relação interpessoal, mais do que o sucesso profissional…que é como quem diz, o amor é o mais importante. Afirma que as pessoas normais é que são muito complicadas! E com isto arranca-nos logo um sorriso de cumplicidade para a conversa. Mas diz mais. Diz que a desinstitucionalização de doentes mentais e o encerramento dos hospitais psiquiátricos, em curso em Portugal, seria maravilhoso se houvesse recursos para o fazer, até porque com o encerramento destas unidades hospitalares, alguns doentes tornaram-se sem-abrigo. Fala-nos de como “uma pessoa diagnosticada com doença mental perde graus de liberdade”. Aponta “medicamentos órfãos”, que ninguém quer promover, mas que são mais eficazes do que os mais caros. Aborda a solidão dos mais velhos e as relações virtuais que proliferam pela internet. Diz que passamos a vida a seduzir e a representar e que é muito difícil homens e mulheres compreenderem-se, apesar de procurarem a sincronização. O seu próximo livro, aprofundará este tema fascinante, esse “bailado que existe entre as pessoas” e que pede acertos de muitos ritmos.
No decorrer da conversa nota-se-lhe uma atenção genuína pelo ser humano. E não aquela atenção bem treinada de quem tem por profissão ouvir os outros, há mais de 40 anos. É psiquiatra e professor, tem vários livros publicados, académicos e outros mais destinados ao público em geral, como é o caso de “Como Tornar-se Doente Mental”, manual que serviu de mote a esta entrevista. De resto, preparem-se para muitos paradoxos e para a necessidade de os superar. E como Pio de Abreu sugere, confiemos na inteligência humana para o fazer.
Esta conversa é motivada pelo seu livro – Como Tornar-se Doente Mental – e pelo dia Mundial da Saúde Mental, assinalado a semana passada. A saúde mental é um bocado o parente pobre da medicina? Pobre e estranho?
Isso é verdade. Mas tem a ver com os conceitos e ideias que se tem. Não deixa de ser um problema filosófico e ontológico. Quando tentamos perceber o que é a mente, ninguém nos sabe dizer. A mente, a alma, o espírito, são conceitos muito vagos, pois não estão definidos em termos filosóficos, nem ontológicos. Vivemos no dualismo cartesiano e imaginamos a mente como uma coisa oposta ao corpo. Na minha perspetiva não é assim, mas creio que tem a ver com a designação. Por exemplo, se disséssemos doenças comportamentais, o conceito seria mais claro e eramos capazes de entender melhor o que são doenças psiquiátricas. Eu prefiro a designação de doença psiquiátrica, apesar de tudo.

Então defende que dizer doenças comportamentais, ajudaria o cidadão comum a pereceber melhor o que é uma doença mental?

Sim, sim, no sentido de que o próprio pensamento é um comportamento. A elaboração das crenças, das expectativas são comportamentos intencionais. Às vezes sabemos o que queremos ou não, mas de qualquer modo tem a ver com o nosso funcionamento ao longo do tempo. Não é propriamente algo como um tumor, uma infecção ou outra coisa que se extraia com uma cirurgia. Não há nenhuma mal formação que se extraia da mente. Se nós pensassemos em doenças comportamentais penso que seriamos capazes de perceber melhor o que são as doenças mentais.

Essa invisibilidade de que sofre a doença mental contribui também para o estigma?

Sim. Mas existem outras razões. Por exemplo, alguns crimes que são noticiados pelos órgãos de comunicação social também contribuem para esse estigma social. Já alguns doentes são pessoas dificeis. As primeiras pessoas a rejeitarem-nos não são os psiquiatras, os psicólogos ou os psicoterapeutas (esses ajudam) mas, pelo contrário, são as famílias. Muitas vezes são elas que não os querem por perto e os colocam em situações difíceis. E claro, a sociedade em geral também não lida muito bem com os doentes mentais.
No caso das famílias, podem não saber lidar com o problema?
Sim. E não é fácil lidar com estes problemas, apesar de tudo.
Na minha perspetiva uma pessoa diagnosticada com doença mental perde graus de liberdade. O seu comportamento fica prisioneiro da patologia que tem e de facto não se adapta a várias condições, acabando por fazer sempre as mesmas coisas em qualquer circunstância. E portanto a liberdade comportamental que tem, reduz-se. Daí a dificuldade de adaptação à diversidade circunstancial. E isso é o que nós, enquanto médicos, temos de tratar. Aumentar os graus de liberdade dessa pessoa, permitindo-lhe uma maior adaptação, flexibilizando-lhe o comportamento e fazendo com que se responsabilize pelas suas decisões. As pessoas devem conhecer as normas para terem a liberdade de as cumprirem ou não ou de as alterar. Se as recusarem, por exemplo, tem de assumir as consequências dessa recusa. A saúde mental é isso, o conhecimento e a liberdade para tomar decisões. Por isso, celebrar o Dia da Saúde Mental obriga-nos a pensar e a refletir nos constrangimentos e nas dificuldades de superação. Ajuda-nos a reflectir sobre os milhares de temas propostos que são extremamente complexos, interferindo com inúmeras esferas do comportamento humano. É deste confronto de ideias e de argumentação que depois se origina a ação. E isso faz-se cada vez menos, porque as pessoas estão cada vez mais fechadas e paranoides pensando que a sua ideia é que está certa e os outros estão todos errados. Essa confrontação é o que nos faz escalar em termos de abertura, de realização pessoal, de evolução da nossa inteligência.
Temos uma Proposta de Plano de Acção para a Restruturação e Desenvolvimento dos Serviços de Saúde Mental (2007-2016). Como vai a saúde mental em Portugal?
É muito complexo. Houve uma tendência muito boa que foi a desinstitucionalização, acabar com os hospitais psiquiátricos. Alguns doentes até viviam lá bem. Outros morreram e com o encerramento destas unidades hospitalares, outros, tornaram-se sem-abrigo. Mas isto é já uma questão do foro económico e social. Só que o problema está em que os doentes, como alguém disse, saíram pela esquerda e entraram pela direita para os hospitais privados. E a tendência é acabar com os hospitais públicos, são muito caros, geralmente situados em zonas urbanísticas notáveis. Os doentes mentais são agora enviados não se sabe para onde, para umas residências onde vivem umas vinte pessoas; às vezes nem sequer médico tem. Isto para dizer que a desinstitucionalização era uma coisa estupenda, maravilhosa, se houvesse recursos, humanos e económicos. Enfim, são opções políticas muitas vezes travestidas de alguma humanização.
Como explica o sucesso do seu livro, já 21º edição, em Portugal?
De algum modo é um livro que inclui o que se chama de terapia paradoxal, que consiste em ajudar a pessoa a ter um sintoma, a ter consciência dele. Há situações que não conseguimos resolver, que não conseguimos curar mas ao ajudarmos a provocar esse sintoma, ajudamos a que a pessoa tenha consciência dele. E se, depois, sabe como provocá-lo sabe como defender-se. Na altura em que o livro saiu não foi fácil. Foi o quase transgredir das normas. Tive muitos colegas que não gostaram. Desorganizou um bocado o mito do psiquiatra e também a sobranceria dos psiquiatras, acho eu. Mas foi muito bem aceite pelo público. Em Itália ganhou um prémio.
Como lhe surgiu a ideia?
A primeira vez que tive a ideia de o escrever foi quando estava a tentar ensinar um interno a pôr-se no lugar de um anóretico, para percebermos como funcionam. E este livro incita-nos a colocarmo-nos no lugar do outro. As pessoas, por exemplo, não compreendem como é que os anoréticos, os obssesivos funcionam. As doenças mentais tem muito a ver com isto. São pessoas que a determinada altura tem um comportamento, mas esse comportamento mais agrava o comportamento patológico. As consequências de um comportamento vão-se transformar em causas. Isso não está muito claro na literatura internacional da psiquiatria mas eu estou absolutamente convencido de que é o que se passa. Este enquadramento é o que caracteriza as doenças mentais, motivo pelo qual defendo que se deviam chamar mais doenças comportamentais. Porque é um comportamento repetido ao longo do tempo (e não outros) que faz com que a pessoa vá perdendo a flexibilidade de ter outros comportamentos, incluindo simular outras doenças mentais.

Simular?
Sim, porque se a pessoa simula uma doença mental com consciência essa pessoa não é doente mental. Tem a liberdade para fazer aquilo que entender.
E isso não assusta os psiquiatras, a simulação por parte da pessoa que se desloca à consulta?
A mim não me perturba nada. Mas sim, retira um pouco o poder sacerdotal que os psiquiatras pensavam ter. Temos de ser suficientemente humildes porque, nós médicos, da medicina ocidental, que publicamos, assumimos as coisas e as escrevemos, temos de ter a abertura para dizer como fazemos e espaço para colocarmos as dúvidas que temos. Sobretudo numa época em que está tudo na internet e as pessoas procuram saber tudo, mesmo o que não está correto.
As pessoas procuram consultá-lo por causa do livro?
Sim. Algumas dizem-me que sim. Há muita gente que lê este livro, nomeadamente pessoas ligadas à psicopatologia. A própria estrutura do livro foi muito pensada e tem a ver com as noções da psiquiatria, por exemplo a classificação espectral. Este é um tema que retomo numa publicação recente, de redação académica, editada pela Gulbenkian, Elementos da Psicopatologia Explicativa, que é uma explicação académica da estrutura de “Como tornar-se doente Mental”.
Lê-se: “Se alguém lhe falar na respiração proteste e diga que essa teoria não é aceite pela ciência psiquiátrica (de facto não é porque não vende comprimidos)”.
Sim, Portugal é um grande consumidor de medicamentos. O Estado desinvestiu da formação dos médicos e da investigação. O Estado agora não investe, está tudo privatizado. São os laboratórios que dominam a investigação, as revistas especializadas norteiam as linhas de investigação e também a formação dos médicos e isso acaba por se refletir nos grandes consensos mundiais. Qualquer revista psiquiátrica ou médica está cheia de anuncios e por isso mesmo a investigação médica está organizada à volta da tentativa de vender medicamentos caros. É que os medicamentos que foram usados há muito tempo e que são bons e extremamente eficazes, mas não dão lucro, foram abandonados, estão a desaparecer do mercado.

Quer dar exemplos?
Acabou, agora, por desaparecer a amitriptilina e outro, um dos medicamentos antidepressivos mais eficazes que é a clomipramina, esteve também para desaparecer. E em Portugal teve de haver um laboratório que se formou só para comercializar esse medicamento. São chamados os medicamentos orfãos, não têm pai, ninguém que os promova. E ainda a clozapina, que foi um medicamento que eu ensaiei aqui, em Portugal, há cerca de trinta anos. E foi extremamente difícil entrar no mercado porque o laboratório que a lançou arrependeu-se e teve de o retirar, estando muitíssimo condicionado. Neste momento é extremamente barato e continua com grandes restrições. Só depois de 20 anos desse medicamento aparecer é que a mesma linha de investigação foi seguida. E os medicamentos que estão na sequência desse, chamados antipsicóticos atípicos, extremamente caros, mas nenhum se equipara a esse, muito barato.

Então não é só uma questão de saber, ou não, respirar bem?

Não. Apesar de saber respirar ser muito importante. Vivemos numa sociedade que visa o lucro, acima de tudo e ensinar a respirar não traz grande lucro. O modo como se respira pode controlar muito o nosso corpo. Os bailarinos sabem disso, os ginastas sabem disso, às vezes os médicos e os psiquiatras é que parecem não saber. Mas isto da respiração não está devidamente desenvolvido, não é o mainstream. Toda a gente sabe da importância de saber respirar, menos a ciência médica oficial. Às vezes quando nos dizem respire fundo, só estão a agravar o problema. Viu o último filme do Woddy Allen? Ela, a personagem principal, diz que entrou em crise de pânico, mas depois quando respira fundo para aliviar, fica ainda pior. Até os realizadores de cinema sabem disto, mas os psiquiatras não!
“Nem sempre a carreira de fóbico é completa...as doenças do foro psiquiátrico sempre lá estão”. Temos, de alguma forma, em nós doenças psiquiátricas em potência?
De certa forma sim! Somos todos diferentes uns dos outros, mas há aqui um aspeto importante. Por exemplo, quando, no consultório, me aparece uma pessoa saudável eu fico em pânico. Sabe porquê? Porque não lhe consigo fazer o diagnóstico. Agora se ela começa a falar dos rituais, da purificação, dos pensamentos que não lhe saem da cabeça eu faço logo o diagnóstico de obssessivo. Na vida, são todos diferentes, mas na patologia são todos iguais uns aos outros. Então, tendo o diagnóstico consigo prever o que a pessoa consegue fazer em determinadas circunstâncias. Porque lá está, reduz os graus de liberdade. Mas isso, actualmente, trata-se muito bem, com alguma eficácia.
Diz frequentemente “os especialistas dizem”...é mais uma provocação, certo? É um especialista, sabe cada vez mais sobre cada vez menos?
Sim, sim. Há muita gente que investiga a terceira pata da mosca, por exemplo. Mas de facto eu tenho a sorte de ser um psiquiatra generalista. Sou um especialista de tudo. Mas há uma tendência, nomeadamente na psiquiatria, para as pessoas se especializarem em determinada matéria e depois perde-se completamente a visão holística, global. É um mal porque acaba por se reflectir nos consensos internacionais, nas linhas de orientação terapeutica. Mesmo agora, na abordagem da DM 5. As pessoas não se entendem com tanta fragmentação. Mesmo os livros de psiquiatria geral, cada capítulo, muitas vezes é escrito por um especialista e, no fim, se formos ver a globalidade daquilo que sai é extremamente contraditório. Um diz uma coisa, outro diz outra. Há especialidade mas não há coerência. Nós não podemos saber tudo mas temos de entrar em consonância com essa visão holística, até pela prescrição de medicamentos.

Por falar em medicamentos. A grande diferença entre um psiquiatra e um psicólogo é que o primeiro medica e o segundo não?

Realmente o psicólogo tem a grande vantagem de não receitar medicamentos. Tem de resolver as coisas de outro modo. Às vezes é mais difícil, leva mais tempo, mas pode ser mais eficaz a longo prazo.

Porque é que a fobia social é uma nova coqueluche?

Agora é o borderline! Mas na altura em que o escrevi, sim, e ainda hoje se verifica. A pessoa não pode ser tímida! Isso é mais ou menos comprometedor, dependendo do que essa pessoa faz. Conto uma história passada nos Estados Unidos, de alguém que estava com o subsídio de desemprego. E propuseram-lhe vários empregos. Mas ele achava que só tinha jeito para ser locutor de rádio. No entanto, havia um problema, era gago! Isto para lhe falar da capacidade de superação. É importante que as pessoas se conheçam para saberem onde funcionam melhor e onde não funcionam tão bem. Dantes as pessoas diziam que se era tímido; agora diz-se que é fobia social. Dantes as pessoas diziam que estavam frustradas, agora dizem que têm uma depressão.
Mas também não pode ser tudo culpa dos nervos, pois não? Qualquer desvio ao comportamento normal, é culpa dos nervos.
Pois não! E não é! Mas agora há uma tendência para psiquiatrizar a sociedade, para psiquiatrizar todos os desvios. Tendência muito criticada na DSM-5, classificação americana das doenças mentais, que fez uma revisão recente. Não podemos deixar-nos levar pela tentação de corrigir e rotular apressadamente qualquer desvio. Uma pessoa pode estar triste e não está obrigatoriamente com uma depressão; uma criança faz uma birra e não temos de ver nisso um comportamento desviante. Psiquiatrizar é uma forma de normalizar a sociedade. E isso é tremendo! As pessoas são todas diferentes. Devemos ter sempre isto em atenção e fazer diagnósticos muito cuidados.
“A relação com os outros dá-nos os maiores prazeres e as maiores dores. Aí se joga o domínio e a submissão. Será bom ou mau?”
Isso é um problema que tem muito a ver com os nossos instintos; instintos diferentes, tratando-se de homens ou mulheres e da própria cultura. Há uma coisa que temos sempre de equacionar, o Homem nasceu para viver com o Outro. A nossa vantagem, na minha perspetiva é a nossa relação com a outra pessoa; a capacidade de nos pormos no lugar do outro, de empatizarmos Isto é muito mais importante do que qualquer outra coisa. De certo modo a evolução biológica parou e a evolução cultural continua. Daí a importância de cooperar com as outras pessoas. Se por um lado esta relação nos envolve e nos emociona, também é uma relação onde se joga sempre o domínio e a submissão, nomeadamente na relação amorosa. A paixão pode ser o maior prazer e a perda a maior dor.

Porque é que diz que a “a carreira de fobia social, variante personalidade evitante, é especialmente destinada a mulheres”?

Agora está tudo a mudar! Mas, sim, uma boa parte das doenças psiquiátricas são mais incidentes em mulheres. A personalidade evitante, por exemplo, está muito associada ao sexo feminino. Até porque também joga muito com a capacidade de comunicação. Enquanto os homens são mais diretos na sua capacidade de comunicação, as mulheres são mais indiretas. Mas neste momento as mulheres dominam a cultura e protagonizam mais, com grande prejuízo dos homens, nomeadamente os mais tímidos. De qualquer modo, a personalidade evitante, que é semelhante à fobia social, atinge os mais novos, geralmente a partir dos 14 anos e tem a ver com o se relacionar de forma indireta: através da arte, através da culinária, das prendas que são de facto coisas de que as mulheres gostam mais. Já a fobia social, não. É bastante frequente quer em homens, quer em mulheres.

E o que é que está a mudar?

É algo que já está acontecendo desde os anos 60. As mulheres emanciparam-se com o advento da pilula Hoje as mulheres são muito independentes. Têm mais estudos, mais saúde e até podem ter filhos quase sozinhas, os homens não. Neste momento, as mulheres entram mais para a universidade, são mais qualificadas leem mais e ganham mais do que os homens. O que ainda se mantem é o futebol! Tenho aqui muitos estudantes cuja fonte do amor próprio é o futebol.

Diz por diversas vezes, no livro, “antes só do que mal acompanhado”. E as pessoas que não suportam a solidão e a evitam a qualquer custo?

É um problema. Mas atualmente, creio, a solidão é um fenómeno que atinge mais os idosos. Vemos por aí muitos idosos absolutamente sozinhos e acredito que, muitos, estão desconfortáveis com isso e sofrem. Por outro lado, há o fenómeno da internet e isso, pelo menos, faz com que as pessoas não se sintam tão sozinhas. As redes sociais, por exemplo, facilitam o contacto com familiares que estão longe. Isto acarreta outro problema. A tendência a que depois as pessoas só se relacionem via internet. Conversam, namoram, conhecem novas pessoas, fazem tudo na internet, têm, inclusivamente, problemas de amor e ciúmes com pessoas da internet, que nem sequer conhecem! Isto altera muito os relacionamentos.

Os relacionamentos, à custa do virtual, também estão a mudar?

Sim, há pessoas que vivem enfiadas no mundo virtual. Há pessoas que tem dificuldade na relação interpessoal, com pais, irmãos, namorados, pessoas que não tem competências sociais, que não conseguem olhar nos olhos dos outros e este fenómeno agrava ainda mais essa situação. Quanto mais se dedicam à internet menos competências sociais adquirem; os outros, na sua realidade, são-lhe cada vez mais estranhos.
Há, por exemplo, os chamados autistas de alto funcionamento. São pessoas com síndrome de Asperger ou personalidade esquizóide que não tem empatia com os outros, que não os reconhecem, pessoas para as quais tem de ser tudo muito lógico e essas pessoas funcionam muito bem na internet. E até há empresas – ainda há pouco tempo uma empresa alemã, colocou um anúncio para recrutamento de pessoas autistas, com vista a trabalharem na área de informática. De qualquer forma também é verdade que os autistas porque trabalham muito bem com a racionalidade, são também as pessoas que nos dominam. E na internet encontram-se muitas pessoas com comportamentos autistas. A este nível constituem comunidades muito fortes.
Acredita mesmo que “confiar nos outros é a coisa mais estúpida que existe”?
Naquilo que podemos saber, é realmente muito pouco lógico confiar nos outros. As pessoas andam sempre na defesa, com receio de serem “roubadas”. Mas atualmente, como sabemos, o roubo é generalizado (risos). É estranho as pessoas confiarem nos outros! Mas há uma questão fulcral: não podemos viver sem confiar! Sim, é um paradoxo. Mas temos muitos na nossa vida e a nossa inteligência também advém de os saber vencer. De facto, em termos de conhecer as pessoas, de confiarmos nelas, temos, cada um, a nossa sensibilidade a orientarmo-nos. E acontece de sermos apunhalados, traídos, roubados. Mesmo nos grandes amores, por exemplo. Mas não confiar é uma maneira de ficar sozinho. É muito ilógico, mas temos de confiar.

Porque é que “a razão e a justiça são as grandes armas do paranoico”?

Porque o paranoico acha que tem sempre razão e que mais ninguém a tem. Está sempre a construir cenários na sua cabeça em que só ele acredita, em que só ele procura a justiça. Um paranoico normalmente acaba sempre por se desviar da realidade. Geralmente há um elemento de perseguição e outro de grandiosidade. Muitos, sentem-se perseguidos pela família, pelos vizinhos, pelo presidente da câmara, às tantas, já o presidente dos Estados Unidos os perseguem! Então, essa pessoa deve achar-se muito importante.

“Passar a vida nos hospitais (como médico ou paciente) é sempre uma oportunidade estupenda de constatar a falta de justiça que pesa sobre a humanidade”? Comente, por favor.

Digamos que os hospitais são o lugar de todas as fragilidades humanas. A doença é extremamente injusta com as pessoas. Pessoas que de repente tem um cancro ou algo realmente grave. A vida, muitas vezes, não é justa e nos hospitais dá-se mais conta disso. Isso é uma lição que aprendemos. Em qualquer idade pode acontecer-nos de irmos parar ao hospital com algo de maior ou menor gravidade e acontece de ser ali que batemos de frente com a velhice. Às vezes a velhice pode ser muito injusta.

“Parece que os ciúmes fazem parte dos sentimentos humanos”. Parece ou fazem mesmo?

Os crimes passionais existem! No que reporta à violência doméstica é muito acentuado. As pessoas matam por ciúme. As questões passionais dominam a nossa vida. Dizem que o sucesso profissional é muito importante. Mas o importante é a relação íntima que temos com as outras pessoas. A relação interpessoal.

Isso é uma forma mais elaborada de dizer que o amor é o mais importante?

Sim! De certo modo é isso. Mas o amor no sentido de domínio e submissão. E de ciúmes também. É muito instintivo, tem a ver com a evolução da espécie e é muito diferente entre homens e mulheres. O homem tem ciúmes…a mulher pode apaixonar-se por quem quiser, mas ir para a cama com outro é que não! Eles passam a vida a fazer isso! A mulher é exatamente ao contrário. Admite que o homem possa cair na cama de outra, agora que ele se apaixone, é que não! Tem a ver com a proteção dos genes. A mulher sabe sempre que o filho é dela. O homem não. Daí o instinto para disseminar os seus genes por várias mulheres. O comportamento instintivo não mudou, mas o cultural está a mudar completamente. Os ciúmes para proteger os genes, já não fazem sentido. Hoje, através de um teste, sabe-se quem é o pai.

“Mas se for homem, tenho um conselho a dar-lhe: comece a beber. Dizem que o álcool aumenta o desejo e reduz a performance sexual”. Mais uma vez a ironia, quando fala do comportamento paranoico. Mas o que lhe quero perguntar é se o consumo de álcool continua a ser um problema sério?

Sim. O álcool é um grande problema em Portugal. Até porque somos um país com forte tradição no consumo de álcool e, no caso das doenças psiquiátricas, o consumo agrava-as. Na questão que menciona, verifica-se esse paradoxo. Se por um lado o álcool aumenta o desejo sexual, por outro afeta o desempenho. E não podemos esquecer que o álcool afeta, também, a personalidade. Um homem de personalidade fraca, submissa ou que seja humilhado por toda a gente, bebe e ganha outra força, vai tudo a eito. Ele sente-se um leão, mas as pessoas desvalorizam-no, infantilizam-no. É muito interessante ver, por exemplo, como é que uma criança representa, desenha um alcoólico. É sempre um homem pequenino.

“Porque cada um precisa do seu teatro para ser levado à certa. Mas atenção. Cada pessoa aprecia um teatro diferente”. O que quer dizer com isto? Que passamos a vida a seduzir ou a representar?

As duas coisas. Temos necessidade de seduzir e, também, de representarmos. Ao longo da nossa vida representamos vários papéis. Somos pais, mães, em casa; trabalhadores, no emprego; amigos, no contexto social. E isto não tem nada de desonesto. Um estudante que está numa aula e lhe apeteça dançar, não deve fazê-lo. Eu, se quero estudar, não vou para uma discoteca. Temos de nos adaptar a cada papel que desempenhamos. A vida não era possível sem isso. Parsons define bem o papel e o status. No sentido de que a sociedade é constituída por um conjunto de papéis interrelacionados. Por exemplo, há uma vaga para um médico e quem concorre a essa vaga tem de desempenhar o papel que lhe é proposto, tem linhas comportamentais, tem ética, tem de responder às expectativas que o doente tem em relação a ele. Daí essa representação em função do público que temos e dessa necessidade de o fazermos.

Isso que diz faz lembrar a terapia pelo psicodrama, que o Professor defende ser a terapia do futuro. Porquê?

Sim, é. Nós no psicodrama usamos uma técnica fundamental, a troca de papéis. Usamos egos auxiliares para que as pessoas se coloquem no lugar do outro e tentem compreende-lo. No caso de uma mãe e um filho, em conflito. Colocar o filho no lugar da mãe, irá ajudar a compreender as atitudes que originaram o conflito. Nós para avaliarmos a realidade temos de nos pôr no lugar dos outros. Quando dizemos que uma coisa é objetiva, não é objetiva. É intersubjetiva. Por exemplo, vejo aqui um estranho jarro de flores, a primeira questão que me coloco é: será que as ouras pessoas também o veem? É que pode ser uma miragem…A capacidade de termos uma visão objetiva das coisas tem a ver com a capacidade de nos colocarmos no lugar dos outros. É fundamental para compreendermos. É uma operação mental que devemos fazer todos os dias na tentativa de compreender melhor o Outro e a própria realidade. No caso de um muçulmano, por exemplo, se nos colocarmos no seu contexto cultural, compreendemo-lo melhor.

Isso parece-me pacífico. E até a questão do jarro de flores não estar lá, onde o vemos. Mas no caso de uma mãe e de um filho em conflito, esse confronto, no âmbito do psicodrama, está revestido de sentimentos. Há nesse caso sentimentos e emoções que não estão nos outros exemplos que deu…

Muito bem. Existe a empatia intelectual e a empatia afetiva, a que nós chamamos também compaixão. Que é o cuidado com o que o outro pode sentir ou não. O tentar compreender o que moveu o outro em determinado sentido e o levou a agir de determinado modo. Se eu tiver uma empatia intelectual forte e uma fraca empatia afetiva, eu domino o outro como quero. Se eu tiver uma empatia apenas afetiva, eu sou dominado pelo outro. Se eu tiver ambas as empatias, eu consigo respeitar mais o outro. É mais equilibrado.

E uma coisa é o muçulmano que nem sequer conhecemos pessoalmente e que queremos compreender melhor por curiosidade antropológica, por exemplo; outra coisa são as pessoas dos nossos afetos…

Claro! Mas o princípio de querer compreender é o mesmo. Nós trazemos o Outro dentro da nossa mente, a nossa mente representa o mundo e todas as outras pessoas significativas. E pode ser até uma pessoa da internet, que nem conhecemos e nos pode ter mudado a vida (para o bem ou para o mal) e que ganhou significado por isso. E estamos sempre a pensar o que pensa o outro das nossas ações. Nós fazemos sempre um espetáculo para a plateia que temos dentro da nossa mente. E o que acontece no psicodrama é que pomos os personagens da nossa mente no palco. É isso.

Diz que o grande problema do doente mental é fazer o mesmo em todas as circunstâncias?

Exatamente! A nossa vida é feita de adaptação onde automaticamente desempenhamos papéis. Por exemplo, uma juíza que é juíza e durante o dia, no exercício das suas funções está a condenar pessoas e chega a casa e tem de ser mãe, apoiar e ser tolerante com os filhos, aí, por exemplo, existe um conflito de papéis. Claro que as pessoas o fazem, mas o papel a desempenhar é completamente diferente. Imagine em casa a juíza, uma mãe que desculpa tudo e depois, no tribunal fazia o mesmo! É essa alternância de papéis que distingue e respeita os diferentes contextos da vida.

Ter um psiquiatra ou um psicoterapeuta ainda é um luxo. Não é uma consulta acessível a qualquer carteira?

Não é um luxo! A cirurgia e a medicina sem psiquiatria, são veterinária. Os médicos deviam saber mais de psiquiatria; a psiquiatria devia ter mais peso curricular. Quanto às psicoterapias, estão agora a ser testadas no seu custo/eficácia em alternativa aos medicamentos. Mas algumas psicoterapias têm mais a ver com o desenvolvimento pessoal. Tornam as pessoas menos vulneráveis, mas não curam doenças. Estas psicoterapias são equivalentes à – ou vão corrigir e – educação. Mas hoje, as nossas crianças são educadas pela televisão
“Diga que lhe passa pela ideia rebentar com tudo, fazer mal a si mesmo ou argumento supremo, que se vai suicidar. Nenhum médico resistirá a fazer quanto estiver ao seu alcance para o evitar”. Esta sua provocação introduz o suicídio. A ameaça de o cometer e as recentes notícias de que os suicídios aumentaram…
É um assunto muito complexo e delicado. Temos de saber se a pessoa ameaça mesmo com a intenção de o fazer ou não. Temos de ser capazes de perceber, por exemplo, até que ponto pode ser uma ameaça velada ou não. E também há muitas tentativas de suicídio que não correspondem a uma verdadeira intenção de morrer. Só que um dia, tantas vezes o cântaro vai à fonte, que quebra. Cada caso é um caso. Depende muito das pessoas, da vida de cada um, dos antecedentes de suicídio na família, se os há ou não.
Saíram agora algumas notícias sobre aumento de suicídios em Portugal. Mas o certo é que os números deixam a desejar. Então se o suicídio for cometido num meio religioso, não é declarado como tal. Ainda é muito complicado declarar os suicídios. E muitas vezes não há prova concreta de o ter sido. Havendo poucos suicídios declarados, o conhecimento de mais meia dúzia deles pode corresponder a uma percentagem de dois dígitos.
E outras vezes, ainda, não são suicídios no âmbito de doença psiquiátrica. Perder o emprego, perder o estatuto podem levar ao suicido pelo desespero de não ter o que dar de comer aos filhos. Mas é natural que as conjunturas de crise deixem pessoas à beira do abismo. Falta-lhes dinheiro e isso não se trata com a psiquiatria, trata-se com a possibilidade de terem um emprego, por exemplo.

O Plano Nacional para a Prevenção do Suicídio aponta mais para a formação, prevenção, para a necessidade de campanhas de sensibilização…

Pois! Não é um plano psiquiátrico, que aponte o tratamento das pessoas com medicamentos. É um plano informativo, de serviço social, de formação, de medidas autárquicas, sociais, políticas. Visa ajudar as pessoas, a por exemplo, arranjarem um novo emprego. Ora isso é para compor o cenário. A atual política cria desemprego e depois fazem estes documentos para lhes dar alguma tranquilidade. Que os meus colegas colaborem com isso, é lá com eles. Tem lá os seus lugares…Eu sou um psiquiatra independente.

Estudos apontam para que em 2030 a depressão seja a maior causa de incapacidade no mundo. De todas as patologias que aborda no seu livro, a depressão é a que tem um dia só para ela. Há o Dia Mundial da Depressão.
É porque é a mais grave?
Não. É porque é a mais frequente e a que rende mais. Para que os laboratórios vendam mais antidepressivos. A depressão patológica, tem um enquadramento sintomático e quando acontece tem mesmo de ser tratada. Uma coisa semelhante à depressão, um modelo, se quisermos, é a perda. Quando perdemos alguém ficamos tristes. Perdemos essa relação e, muitas vezes, perdemos a relação com as outras pessoas. Refugiamo-nos, ficamos em casa, sozinhos, apáticos e a certa altura perdemos a própria sincronização com o sol, dormimos de dia, estamos acordados de noite, é a chamada alteração dos ritmos circadianos. E mesmo o adormecer muito cedo e ter um acordar precoce, também são sintomas a ter em conta. O mesmo acontece com a perda de estatuto, de referências, de emprego. A vida é mudança e as pessoas não lidam bem com ela, apesar de todos sabermos que é assim, que a vida muda. Não podemos esquecer que também é verdade que quem perde alguém, quem fica dessincronizado com tudo também se pode voltar a apaixonar, que é quando ganha alguma coisa ou faz por a ganhar.
Mas temos de ter cuidado neste diagnóstico, porque agora toda a gente diz que está deprimida. E isso só favorece os laboratórios.
Pelo número de medicamentos que os portugueses compraram diariamente, nos primeiros oito meses deste ano, em média, mais de 75 mil embalagens de antidepressivos e afins, podemos dizer que somos muito depressivos?
Por acaso somos um bocado. Os brasileiros lidam melhor com as contrariedades da vida, por exemplo. Acho que os brasileiros são um bocado mais maníacos e os portugueses mais deprimidos. É aquela coisa do fado e do destino. Tem a ver com a nossa história, a nossa cultura e até com a nossa emigração que foi em massa e, agora, vai pelo mesmo caminho.
Escreveu: “Mulheres e homens é como se fossem de espécies diferentes, desde a biologia aos instintos. Mas é impossível não fazer por se compreender mutuamente.” Tem uma receita simples?
Isto é politicamente incorreto. Mas depois de todos estes anos a pensar no assunto e depois de ter acreditado, um dia, que eramos todos iguais e, depois ainda, de ter assistido à emancipação da mulher, nos anos 60, tenho, agora a plena noção de que somos muito diferentes, cada vez se nota mais que somos completamente diferentes. É muito difícil uma mulher compreender um homem e vice-versa. Nos casais é terrível. Seduzem-se. As mulheres entre si compreendem-se muito bem; ou homens também. Mas é preciso evitar a situação de que as mulheres acham que compreendem tão bem os homens que, depois, os acham todos iguais. E o mesmo raciocínio é válido para os homens. De modo que não há receitas simples. Não há nada simples na vida humana. Mas se houvesse uma regra, seria a discriminação positiva. Na maior parte das vezes, a favor dos homens, agora. Por exemplo, nos empregos públicos. Existem muitas instituições e repartições públicas onde existe uma desproporção enorme entre homens e mulheres. A preocupação com a paridade entre homens e mulheres é fundamental. Ambos têm competências e sensibilidades diferentes, que se equilibram e complementam muito bem. Isto para dizer, de uma forma simples, que um homem não vê nada de jeito sem uma mulher e uma mulher não vê nada de jeito sem um homem.
A família está em crise? E agora?
Está em crise porque, desde a emancipação das mulheres, houve uma mudança de regras completa e vivemos um período muito difícil onde as pessoas não sabem o que podem fazer. E o problema não é tanto a família, são os filhos. Numa família monoparental, por exemplo. Um filho só com uma mãe, ou só com um pai…isso é uma situação delicada, pelo menos no que respeita a problemas psicopatológicos que possam aparecer. De resto nós estamos permanentemente em crise porque as coisas vão mudando, a tecnologia vai mudando. Tudo muda. Só me admira é como é que a crise não é maior. Nos anos 60, o advento da pílula, como já referi, foi muito importante, permitiu libertar as mulheres. Eu sou de uma geração que viveu o antes da pílula e o depois da pílula e a mudança é completa. Dantes o problema era engravidar, agora…Há fatores, como este, que mudaram radicalmente a noção de família. Até o próprio evoluir da tecnologia, criou uma nova tendência de a família ser mais os grupos de amigos do que a família natural. Não sei para onde iremos evoluir, mas o certo é que a tecnologia evolui muito mais rápido do que a modernidade, do que as nossas regras. O que vale é que a vida é uma experiência permanente. E nós vamos experimentando. Haja lucidez para recusarmos o que não queremos, o que não nos faz falta. E é preciso coragem para não aceitar as coisas absurdas.
Escreveu: “Outro sinal dos novos tempo é ter-se dado uma maior importância aos sentimentos do que ao raciocínio”.
Tudo isto tem de ser equilibrado. O sentimento também tem a ver com uma coisa que nós não conhecemos que é a moral biológica. Isto tem a ver com a reprodução, com a sobrevivência da espécie, do individuo. A moral biológica tem a ver com os sentimentos. Por exemplo, uma célula para viver, não vive sozinha, está no meio de um tecido. Há uma espécie de compromisso com o corpo, para que ela se mantenha ali. Se ela se reproduz sem restrições, origina um cancro. A sua vontade até seria reproduzir-se, mas existem as constrições do corpo, que não deixam. O prazer da célula era reproduzir-se. Para dizer que há aqui um jogo entre o prazer e o dever. Nós, de certo modo, também funcionamos assim. Temos de arranjar um equilíbrio permanente. Entre o dever e o que nos apetece fazer, porque nós também não sobrevivemos fora da sociedade.

E a inteligência emocional? Que importância lhe dá?
O tema vendeu muitos livros e serviu também para vender testes; os testes de personalidade são um negócio. Mas Daniel Goldman escreveu sobre isso. Depois, escreveu outro livro sobre a inteligência interpessoal, para mim a mais importante. É a grande questão. As nossas emoções derivam quase todas da relação interpessoal.

Durante estes 13 anos deu conta se o seu livro tem alguma contraindicação?
Não é para ser lido por pessoas estúpidas. Eu confio, como se escreve no livro, nos surpreendentes desígnios da inteligência humana. De resto, é um modo de informar, embora paradoxalmente. É isso!


Este seu livro é uma desconstrução, uma inquietação, uma provocação. Enquanto psiquiatra, qual é a sua grande inquietação, na atualidade?
Enquanto psiquiatra faço o que posso! Enquanto ser humano estou muito preocupado com o domínio dos economistas neoliberais. E com o perdermos a identidade das nações e das pessoas. Acho que a busca galopante do lucro vai acabar com o próprio sistema financeiro. Mas antes de mim, já o Marx o achava.
Tem mais projetos editoriais?
Sim. Estou a desenvolver algumas ideias. E uma delas tem a ver com o que já disse. A relação, o bailado que existe entre as pessoas. Uma relação é uma sincronização com a outra pessoa. Acordar ao mesmo tempo, dormir ao mesmo tempo, chegar a casa ao mesmo tempo, fazer as refeições ao mesmo tempo. A mesa é um aspeto importante. Os horários das refeições conjuntas. Mas ando à volta disto. Das pessoas sincronizadas, inclusivamente, nos pensamentos, quase que sincronizam ondas mentais. A dança entre um homem e uma mulher é um bom exemplo da relação, da sincronização dos ritmos que nós temos, com os outros e até com os astros. E acho, lá está, que a depressão é uma perda dessa sincronização. Repare: nos mamíferos o mais importante é a sincronização com a família; os peixes não precisam. É muito importante o sentimento de pertença; o amor, no final das contas! Por isso é que quando as pessoas se apaixonam, voltam a procurar a sincronização, voltam a sentir-se capazes de tudo e seduzem. Às vezes acontecem coisas estranhíssimas de sincronização entre duas pessoas. Coisas que ainda não estão completamente estudadas.

Quando pensa ter esse livro concluído?

Para o ano, talvez…

Qual é a sua memória mais antiga?

A minha memória mais antiga sou eu ao colo da minha avó, a olhar para um sótão e a dizer papão. Aparentemente não sabia falar. Agora, não sei se isso existiu. Provavelmente não terá existido. Não sei. A memória também passa muito pela sua reconstrução através das nossas palavras e narrativas.

Há alguma pergunta à qual gostasse de responder, agora, e eu não lha tenha feito?

(pausa)
Não me perguntou se sou feliz?

É um homem feliz?

Sim. A vida trouxe-me mais do que aquilo que eu esperava dela. Apesar de tudo…
 FIM

sábado, 19 de outubro de 2013

A parte psicótica da personalidade em todos nós


de Erik Johansson

“Nos legados de Bion, um ponto muito importante é o que ele denomina como parte psicótica e não psicótica da personalidade. Essa parte psicótica não equivale a um diagnóstico psiquiátrico, mas sim a um modo de funcionamento mental, coexistente a outros tantos. A PPP (parte psicótica da personalidade) designa comportamentos mais regressivos, com núcleos primitivos enquistados na personalidade de qualquer indivíduo.” 

Trabalho sobre o seminário de Bion. Coordenador Dr José Luiz Petrucci. Candidata Rosa Beatriz Santoro Squeff, Agosto 2006 (disponível online, aqui )

Revolucionária esta ideia que Bion nos deixou, que tanto os indivíduos psicóticos (com estrutura psicótica: esquizofrénicos…), como os neuróticos, assim como as pessoas psicologicamente saudáveis, têm partes psicóticas na personalidade. E todos têm também, partes saudáveis (não psicóticas), o que significa que a neurose, a psicose e a normalidade não são entidades clínicas puras, mas coexistem em qualquer pessoa.
Se isto vos parece uma teoria como tantas outras, devo dizer-vos que para mim é absolutamente genial, útil para a vida, já que a parte psicótica da personalidade identificada por Bion, e existente em todos nós, manifesta-se através de comportamentos de recusa da verdade, com preferência pelo mundo das ilusões, de enorme oposição à mudança e rejeição da realidade tal como ela é. Ou seja, manifesta-se na nossa vida quotidiana quando evidenciamos intolerância à frustração, medo de procurar e descobrir coisas, discursos destrutivos e relações afetivas envoltas em ambivalência - que são as características próprias dos psicóticos.
Nas pessoas chamadas pela linguagem popular, “bem resolvidas”, estes comportamentos existem ou poderão ser desencadeados em situações de crise psicossocial, mas habitualmente são tornados conscientes, integrados na personalidade e transformados com vista ao crescimento como pessoa e à qualidade das relações interpessoais. 
Em outros indivíduos, a parte psicótica mantém-se separada do resto da personalidade, como um quisto, com dificuldade em ser transformada em saúde mental, que irrompe nos comportamentos intempestivos, inesperados, a despropósito e frequentemente ofensivos - a arrogância (identificada por Bion como característica da parte psicótica da personalidade). É fonte de agressividade.
A "quantidade" da parte psicótica na personalidade da pessoa, determina o grau de sanidade da mesma.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O que é próprio da feminilidade


 
“Mas, em primeiro lugar, notemos que o que é próprio da feminilidade é não poder ser reconhecida senão por um outro. Diante do espelho, uma mulher pode achar-se bela ou feia, jovem ou velha, mas nenhum cânon estético, nenhuma referência visível poderá garanti-la acerca do que é todavia o ponto focal da questão. A feminilidade é o que é atribuído pela confissão do homem, e é importante dizer-se que a investidura do seu estatuto de desejada não repousa para ela em qualquer referência de realidade objectiva. O que o homem deseja nela só ele pode dizer se ela o possui ou não.”
Pierra Aulagnier-Spairani* Observações sobre a feminilidade e os seus avatares
In Desejo e Perversão Moraes Editores
Uma prova  de que certos psicanalistas acompanharam a mentalidade da época, em que se acreditava que o homem tinha de certificar o valor da mulher. 
Mas as mulheres de todas as épocas no que diz respeito à imagem, embelezaram-se também para as outras. Nos tempos modernos, muito para si próprias e não dependentes da apreciação dos homens.
Como falar do olhar dos homens….Como falar do seu inigualável efeito?…

*     Psicanalista e Psiquiatra. Nasceu em 1923 – Faleceu 1990

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Autoanálise de Fernando Pessoa



Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, datada Lisboa 13 Janeiro de 1935
Meu prezado camarada:
(…)
Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou mais propriamente, um histérico-neurasténico. Tendo para  esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de bulia, que a histeria propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos -  felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim,; quer dizer, não se manifestaram na minha vida prática, exterior e de contato com os outros; fazem explosão para dentro e vivo-os a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas, cada poema de Álvaro de Campos (o mais histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia.
Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo.  Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro – os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.
Desde criança que tive tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas cousas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço, como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.
(…)
Fernando Pessoa, Correspondência 1923 – 35
Ed Manuela P. da Silva, Lisboa Assírio e& Alvim 1999

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Autoestima é autodisciplina


Casa da Sorte, Rossio - Lisboa

Se nos sentimos válidos, sentimos que o nosso tempo é valioso, e se sentimos que o nosso tempo é valioso, queremos utilizá-lo bem.”
M.Scott PecK O caminho menos percorrido Sinais de fogo
Depois das férias, vem a pretensão de definir um propósito que possa ajudar a tirar o que não importa.
Como a gestão do tempo que dispomos é assunto central nas nossas vidas, os meus carrascos internos dizem-me que esta vontade talvez aconteça por estar stressada e sem disposição para estar com certa pessoa ou em tal situação.
Como se sabe se isto ocorre por stress, ou por outras razões ligadas ao processo de envelhecimento, como se nos estivéssemos a despedir da desalinhada avidez da juventude? Ou será uma manifestação de autoproteção, por me considerar com valor e por tal, evitar expor–me a determinados acontecimentos?
Dependerá da firmeza do que queremos ser. A sensação de segurança identitária ajuda a que nos disciplinemos ao ponto de tomarmos conta de nós, e que utilizemos melhor o nosso tempo e investimentos. Sobrará mais para o novo e para o bom, pelo que, progride a par da libertação psíquica.
É uma estrada longa. Tempo sobre tempo, é anúncio de amor-próprio que se encontra na maior utilidade que damos às nossas escolhas.