sexta-feira, 27 de maio de 2011

O ódio branco

Peter Blake Viewpoint 1979


Ódio parece-nos um sentimento muito forte. Neste caso do ódio branco, não se trata de uma força destrutiva que persegue e mata. Não neste caso. Mas não deixa de ser mortífero na mesma, porque expressa-se de uma maneira indirecta, sub-reptícia, atacando o amor-próprio daquele a quem se dirige. Por isso se chama de ódio branco ou violência oculta.
São todas aquelas atitudes em que um recusa-se a tratar o outro como pessoa, ignorando-o, negando-lhe o direito a uma opinião, a um lugar.
Algumas vezes, o ódio é de tal forma intenso que leva à destruíção da consciência dele mesmo (Otto Kernberg). Pelo que, não permite que o indivíduo corrija os comportamentos e os efeitos nocivos que causou no outro.
Constituem atitudes perversas, cuja natureza não permite que as enfrentemos directamente. Quando são denunciadas, é frequente a vítima ser acusada de ser sensível demais, ou ter manias de perseguição.
É um ódio muito presente nas nossas vidas pessoais e laborais.
“Perante ele (esse ódio branco), a única relação justa consiste então - já que o outro, por sua vontade, se ausentou da relação – em sermos justos para connosco: importa recorrer a uma força de resistência para salvaguardamos o nosso lugar e defendermos os nossos direitos, e tal força terá de ser pelo menos igual à força que o outro utiliza para no-los negar. “
O Ódio Necessário Nicole Jeammet Editorial Estampa
(Mas não necessariamente uma força com os mesmos métodos)

terça-feira, 24 de maio de 2011

Isabel Leal (2ª Parte)


Isabel Leal é psicóloga clínica. É professora no Instituto Superior de Psicologia Aplicada (Lisboa). É presença regular em jornais e revistas.
Deu uma entrevista com o título - O orgasmo pode não ser especialmente bom - a Anabela Mota Ribeiro do Jornal Publico, em 2009, da qual retirei esta parte:

Estamos num tempo em que mais facilmente se pratica coito do que se dá um abraço?
Isabel Leal: Gostava tanto de saber responder a isso...

O que está implícito na minha pergunta/provocação, por um lado, é a existência de um novo paradigma e, mais que tudo, a noção de intimidade.
Isabel Leal: Temos a ideia de que as relações sexuais são uma coisa banalizada. Isso é verdade para um grupo de pessoas, e é mais visível do que foi noutras épocas. Mas não penso que a maioria das pessoas seja muito promíscua e que vá para a cama a torto e a direito com toda a gente.

Os relatos de casais adeptos do swing fazem páginas de revistas...
Isabel Leal: As pessoas não têm uma relação com a sexualidade tão sacralizada, culpabilizada e angustiada como noutras épocas. Mas consome-se pornografia de uma forma crescente. Se podem ter uma vida sexual tão diversificada e intensa, por que é que recorrem maciçamente à estimulação ou visualização da pornografia? (Isto sem nenhum preconceito em relação à pornografia.) O mercado que ela cria diz-nos que há ainda uma relação com a sexualidade que não está naturalizada.

Como entender, então, que ela apareça, sobretudo na comunicação social, como uma coisa banalizada?
Isabel Leal: Como se vivêssemos numa total desinibição.
Vivemos em equívocos. Há muitos mundos paralelos. A dimensão da ternura física, que remete para a noção de segurança, afecto, vinculação, é constitutiva do que somos. Precisamos imenso disso. O sexo, o coito, também são precisos. Mas, do ponto de vista desenvolvimental, o abraço vem sempre antes.
O sexo é um patamar de comunicação diferente do da ternura.
O sexo pode ser exercício físico, desligado de afectos. Há pessoas que falam do sexo desligado de afectos, há pessoas que falam dos afectos sem sexo. Provavelmente, a maior parte das pessoas andará algures entre uma coisa e outra, e lá vai conseguindo, como pode e sabe, relacionar uma coisa com a outra.

Em encontros episódicos, de sábado à noite, existe espaço para a intimidade? Procura-se a intimidade ou vestígios disso?
Isabel Leal. A sexualidade (em sentido estrito) pode não ter nada que ver com o universo afectivo. O que há de residual da moral judaico-cristã, em países velhos e católicos como o nosso, em que as noções estão esbatidas, mas estão lá, é que a sexualidade deve estar ao serviço dos afectos.
Não são compreensíveis um sem o outro - esse é o discurso oficial.
O que os pais ensinam aos filhos é isso. Há imensas pessoas a dizer: "Não sou capaz de ter uma relação sexual sem gostar do outro." Digo que isto é residual em relação à moral cristã porque é como se o pecado da carne fosse desculpado e legitimado pela pureza do sentimento. Não acho que seja assim. Às vezes o sexo é mesmo exercício físico. Corresponde para muitas pessoas a uma dimensão de luxúria.

Isso é válido para homens e mulheres?
Isabel Leal: Sim. Há o discurso tradicional, que considero verdadeiro, que [diz que] tendencialmente as mulheres, ainda hoje, usam o sexo para chegar ao amor. E vice-versa para os homens. Muitas vezes enganam-se a si próprios nesse processo. Uma mulher precisa de se reconhecer apaixonada para ser capaz de desenvolver uma estratégia de sedução ou aproximação sexual. Encontro imensas pessoas que têm relações ocasionais e que estão sempre à procura do homem e da mulher perfeita - mesmo que o sexo seja do mais instrumental que há.

Está a dizer que nas relações ocasionais continuam a procurar o grande amor? Que dessa vez lhes saia a sorte grande?
Isabel Leal: Pode não fazer sentido, mas acontece. Uma coisa é o sexo, outra coisa é a simbólica do sexo. Homens e mulheres andam em busca do príncipe encantado e cada encontro sexual é simbolicamente uma tentativa de o encontrar. Quem está de fora diz: "Então tu vais todas as semanas com uma pessoa diferente para a cama, como é que estavas à espera que corresse?" Mas, no discurso que as pessoas fazem, percebe-se que havia ali uma espécie de romance. Aqueles cinco minutos em que houve troca de olhares, a tentativa de encaixe, a festa no cabelo, o gesto simpático, a maneira como dormiram... Coisas que para quem está de fora são banalidades, mas que as pessoas valorizam e a que dão importância.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

...não lhe foi possível ser dramaturgo como Shakespeare e Goethe

Sobre Fernando Pessoa:
"Pessoa, Poeta Dramático, vive dentro de si o DRAMA em GENTE, sem gente, sem verdadeiros protagonistas.
Vive-o dramaticamente e expressa-o com qualidade literária inexcedível, mas dentro de si, num jogo de espelhos onde se reflectem os seus Objectos Internos difusos e ambíguos, pouco diferenciados. Por isso não lhe foi possível ser dramaturgo como Shakespeare e Goethe que tanto admirava.
Os seus POEMAS DRAMÁTICOS são estáticos."

Celeste Malpique Fernando em Pessoa, ensaios de reflexão psicanalítica Fenda

É uma rosa

É uma rosa. É real, fotografei-a ontem.

Foi um dia maravilhoso. Muito contribuiu ter passado a tarde concentrada em pouca coisa: fotografar rosas.
Foi uma boa ideia reduzir os estímulos. A repetir. E não sou eu só a dizê-lo, a ciência da felicidade, também.




sexta-feira, 20 de maio de 2011

Quero a emoção de vê-la traindo...

Visconde de Valmont: “Quero a emoção de vê-la traindo tudo o que acha mais importante.”
Filme Ligações perigosas


Madame de Tourvel é de uma comovente candura e seriedade de costumes e sentimentos.
O Visconde de Valmont ao ambicionar que Madame de Tourvel desrespeite tudo em que acredita - transponha as suas fronteiras - procura desorientá-la e destruir a sua serenidade. Não ama a Madame de Tourvel. Irá amá-la tarde demais.
Para o visconde, este seu propósito, além de acreditar ser um direito inalienável, torna a sua a vida incrivelmente intensificada. Resgata-o do tédio, e permite-lhe uma orgástica sensação de triunfo.
O triunfo não se dá sobre a Madame de Tourvel, mas sobre a sua consciência moral que tenta anular, num banquete de omnipotência que só o vazio pode justificar.

Conceitos chaves: defesa maníaca; omnipotência; narcisismo.

A mais bela declaração sobre os limites do amor:
“O desenvolvimento da capacidade de amar consiste em aceitar as fronteiras de nós próprios e dos outros, ao mesmo tempo que permanecemos vulneráveis e expostos a ser feridos em redor dessas fronteiras.” Gillian Rose (filósofo)

terça-feira, 17 de maio de 2011

O desabar do mundo nos momentos de decepção

“Nos momentos de decepção deste tipo, que todos nós vivemos sob uma ou outra forma, dir-se-ia que o próprio tecido da realidade se rompe, e que descobrimos que o mundo que conhecíamos, ou pensávamos conhecer, se perdeu; como se o desabar do mundo simbólico equivalesse de facto ao desabar do mundo físico.”
Ivan Ward Fobia Almedina

Uma palavra. Um gesto. Como estamos magoados “só por isso”, interrogam-nos com um certo constrangimento. Porém, aquela palavra, aquele gesto, tornaram-se emblemáticos de quem é o outro.
Não conseguimos dar nome às emoções, e receamos que se lhes tocarmos com as palavras, elas despertem a dor. O mundo que conhecíamos até aí deixa de existir. O futuro é ausente. Estamos emparedados.

domingo, 15 de maio de 2011

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Ter consideração

Alison Watt

"Ser verdadeiramente capaz de consideração significa que somos capazes de nos colocar no lugar de outras pessoas: identificarmo-nos com elas. Ora essa capacidade de identificação com outra pessoa é o elemento mais importante nos relacionamentos humanos em geral, e também condição para autênticos e fortes sentimentos de amor."
Melanie Klein, e Joan Riviere, Amor, Ódio e Reparação

Sermos capazes de nos colocarmos no lugar do outro é a capacidade que está na base de todas as nossas interacções sociais, e do amor e amizade, em particular. Permite quando necessário, colocarmos os interesses e necessidades dele, em primeiro lugar.
É essa capacidade que torna possível conter a nossa agressividade, o abuso do poder, ou até a escusada necessidade de afirmação pessoal.
Sem ela não há amor, nem amizade, nem o sentimento correcto e amável a que chamamos estima.

terça-feira, 10 de maio de 2011

"O Estrangeiro" de Albert Camus (2)

Ainda sobre a morte do árabe pela personagem principal, em "O Estrangeiro" de Albert Camus:

“A fim de escaparem a uma culpabilidade inconsciente, certos indivíduos poderão tentar provocar a censura dos outros. Freud escreveu acerca daqueles a que chama “criminosos por sentimentos de culpa”, pessoas sobre as quais pende a ameaça de sentimentos relativos à sua própria maldade que não são capazes nem de compreender nem de suportar, pessoas cujos sentimentos de culpa são tão poderosos que só podem ser aliviados quando fazem uma coisa realmente má. Para o que há duas razões. Em primeiro lugar, fazer uma coisa realmente má faz com que os sentimentos de culpa pareçam racionais; o crime, por mau que seja, é limitado e tem lugar no mundo real, o que permite que de uma maneira ou de outra se lide com ele.
Em segundo, a punição que se segue ao mal assim feito é susceptível de aliviar temporariamente alguns dos sentimentos de culpa. É que a punição operada pelas autoridades exteriores poderá revelar-se menos devastadora que a punição imposta ao sujeito por um supereu particularmente severo.”
Priscilla Roth Supereu Almedina

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Ser verdadeiro



As circunstâncias são difíceis. Cada um é casado com outra pessoa.
ELE: “O sentimento que temos um pelo outro, é verdadeiro para ti como é para mim, não é?”
ELA: “Sim, é verdadeiro”.

O dilema da vida: ser verdadeiro ou não.
Uma pessoa que se coloca em frente a outra e é autentica. Primeiro, encontra em si essa verdade, depois com o outro.
Os seus corpos e almas irão recordá-lo para sempre.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Acho que vou fazer papel de tola...





Acho que vou fazer papel de tola... Mas, porque não? A vida é curta. (Pensa a personagem interpretada por Michelle Pfeiffer no filme Cheri).

O que parece ser um pensamento vagamente filosófico “a vida é curta”, contém após hesitações, força e determinação. E ditas as razões sob este modo abreviado, revela-se a nossa inteligência prática. Moderna. Julgamos. Estamos de acordo com o evoluir dos tempos. Deveríamos sossegar agora, pela clareza de espírito que evidenciamos, e aproveitar a vida. Um novo amor.

Sim. Devemos voltar a confiar.
Mas não é com base num raciocínio lógico, que se iluminou o nosso espírito.
Podemos nem nos aperceber, mas é irresistível desvendar se o novo amor consente o devaneio, a brincadeira, a espontaneidade. O desejo é que possa dar corpo ao nosso mundo simbólico. Ritualiza-se toda a nossa infância, quando nos queriam sem fazermos esforço. É o privilégio dos amores felizes, sermos parvas, por vezes, e acharem-nos graça.
Marca a cadência do amor. Morre, quando morre o amor. É um sinal. Já não há vontade de brincar e custa perdoar, por isso.

domingo, 1 de maio de 2011

A bela indiferença



Cena do filme: Some like it hot


DAPHNE: Fui franca contigo - não podemos casar de maneira alguma.
OSGOOD: Por que não?
...
DAPHNE: Não estás a perceber, Osgood…Oh, eu sou um homem!
OSGOOD: Bom... ninguém é perfeito.

Poderá não assinalar neste diálogo como a “bela indiferença do histérico”.
Quem se importa? O amor é belo!

"A histérica e também o histérico é alguém que está sempre em estado de desejo mas recusa as responsabilidades ou as consequências desse desejo – alguém, ela ou ele, que quer ter mas se recusa a ter. "
Julia Borossa Histeria Almedina

Trindade Santos

Anabela Mota Ribeiro entrevista o filósofo José Gabriel Trindade Santos. Dessa entrevista publicada na Publica, hoje, transcrevo alguns retalhos.
José Gabriel Trindade tem quase 70 anos. Doutorou-se em Platão.
Anabela Mota Ribeiro apresenta-o: O seu primeiro livro foi Filosofia no Liceu ("que ainda hoje é citado, para dizer bem e para dizer mal, como todos"). Tem uma obra extensa, traduções do grego, análise crítica. Ainda este ano deve ser publicada uma tradução do Sofista de Platão, de cujo projecto é o coordenador geral.
Vive no Brasil,  desde 2003, e ensina na Universidade Federal da Paraíba.
...
O que entende por estupidez, neste contexto (de Antígona)?
Trindade Santos: A estupidez é a incapacidade de distinguir o essencial do acessório, a incapacidade de estabelecer uma prioridade, de perceber o que está em causa num problema. É o caso da Antígona. Creonte põe a sua prioridade à frente das outras. Não vê os sinais, não ouve os avisos; vai em frente, fiel apenas ao desígnio que traçou. A consequência é a morte, primeiro, da mulher e, depois, do filho.
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"Só sei que nada sei", parafraseando Sócrates. Na modernidade, fala-se de ignorância e de irresponsabilidade. Ouvimos pessoas dizer: "Não tenho culpa, não sabia."
Trindade Santos: Mas têm. A noção de culpa não se aplica na Grécia antiga como se aplica hoje. O homem grego tem noção das suas limitações e sabe que, quando as excede, paga por isso.
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Na Odisseia, quando Ulisses vai ao Hades, um mundo de sombras, encontra Aquiles que lhe diz que mais vale ser servo da gleba na Terra do que rei de todos os mortos no Hades. Ocorreu-me esta passagem a propósito do desejo de encontrar a luz, viver na luz. Nem que seja na condição de servo da gleba.
Trindade Santos: Um momento de luz. Conseguir encontrar uma resposta. Neste momento tenho de resolver um problema de um texto que estou a escrever, conseguir compreender o sentido da tese defendida por Sócrates no Fedro - de que o amor é uma divindade. Para um grego, dizer que o amor é uma divindade é como dizer hoje que o amor é a mais imediata expressão da nossa transcendência. Amando, transcendemo-nos.

Somos outros, saímos de nós.
Trindade Santos: A força que nos faz sair de nós só pode ser encarada como uma força divina. Nessa medida, saímos de nós quando amamos. E todos temos em nós, a todo o instante, a medida da nossa transcendência e a capacidade de a efectivar, através do amor. No amor físico, evidentemente, e em todas as outras espécies de amor que estão associadas ao amor físico. Dizer que o amor é divino é dizer que é a força que pode levar todos os homens, machos - não estamos a falar de mulheres - a transcenderem-se.
...
Exemplifiquemos com dois mitos, dos mais populares na cultura ocidental, o de Sísifo e o de Orfeu e Eurídice. Como interpretá-los à luz dos nossos dias?
Trindade Santos:  No caso de Orfeu parece-me evidente: o amor nunca pode refugiar-se no passado. Daqui a algumas horas, quando a minha mulher chegar a casa, vou-lhe perguntar onde é que ela esteve, e ela vai-me dizer. Se eu conceder importância demais a essa pergunta e a essa resposta, estou a fechar o amor num círculo de factos passados. Estou a transformar a minha vida, e também a dela, num episódio inquisitorial. Eurídice não pode olhar para o mundo de onde foi afastada. A morte não se pode observar por cima do ombro - a morte agarra.
...
Que leitura faz do mito de Sísifo?
Trindade Santos:  O mito de Sísifo não é independente do Sísifo, que é uma tragédia da autoria de Crítias, onde pela primeira vez é defendida a crença de que os deuses são uma invenção dos homens. Crítias é um dos 30 tiranos, um dos perseguidores de Sócrates, um dos que morrem lapidados no dia em que a revolução democrática corre com ele e com Cármides, e acaba por matá-los à pedrada. Depois há o famoso suplício de Sísifo, que empurrava uma pedra até ao alto de um monte, e depois a pedra caía de novo. Essa é uma forma de ver a vida. Nalgum momento a pedra escapa-nos, o terreno falta-nos debaixo dos pés. É uma das muitas possíveis formas de consciência da mortalidade e da limitação do ser humano. Não é isso a vida, empurrar uma pedra e vê-la cair? Como a sua própria vida, a perder-se.

Se a vida fosse a pedra e a viagem fosse única. Mas no mito de Sísifo acontece um movimento contínuo, ininterrupto. Ele não desiste de pôr novamente a pedra no cimo do monte, e ela acaba sempre por rolar.
Trindade Santos: E eu não desisto de conferir sentido à minha vida. E, pelo menos até agora, tenho a consciência de que sempre algo me escapa [riso]. Só que a minha atitude não é trágica. Quando se está a jogar um jogo, o jogo é a nossa forma de estarmos vivos enquanto o jogo dura. A única diferença entre uma concepção lúdica e uma concepção trágica da vida, neste ponto, é que o jogo acaba quando o jogador diz: "Acabou."
...
Numa leitura muito redutora, e pela rama, as tragédias gregas surgem-nos pejadas de situações desmedidas, de uma enorme violência, de um carácter sangrento. Medeia é uma mulher que mata os seus filhos. Como compreendê-lo?
Trindade Santos: Medeia mata-os porque são filhos dela, ela vai ser posta fora daquela terra, vai ficar sem os filhos. O melhor é matá-los para não os deixar a qualquer homem. O homem não é portador de vida, e a mulher é, e se é portadora de vida tem o direito de matar.

Esse é o entendimento de Medeia.
Trindade Santos:  É.

Isso contraria aquela leitura, muito apressada, de que o faz enlouquecida de ciúme.
Trindade Santos: Qualquer leitura da história de Medeia é redutora. O que está em causa é a figura da mulher, e o questionamento que faz do seu lugar no mundo. Todas as mulheres são Medeia, podem é não matar os filhos [riso].

Significa que todas têm a capacidade de gerar vida, é nesse sentido que o diz?
Trindade Santos: Não só porque têm a capacidade de gerar vida, mas também porque os homens que geram a vida nelas não têm essa capacidade. É essa diferença que gera o conflito.
Medeia tinha uma terra e era alguém. De repente trocou tudo isso por um homem. Foi proscrita, teve de fugir. Entregou tudo àquele homem, que a abandona, que lhe tira o futuro, o presente. O passado, já lho tinha tirado. Resolve cortar com isso, e cortar com isso é cortar com o seu próprio corpo, com os filhos. Mata-os amando-os. (Isto aprendi: as mulheres são capazes de sacrificar o seu próprio amor, os homens, não, são muito mais egoístas.) As mulheres ainda hoje fazem isso. Não matar os filhos, mas ritualizarem esse acto nas inúmeras formas de separação. A forma como as mulheres se separam dos homens, e estou a falar das que estão conscientes do processo em que se encontram, é diferente do modo como os homens se separam. Eurípides percebeu isso, e pôs tudo isso naquela peça. Todos matamos os nossos filhos.











Mês da saúde mental nos EUA


Van Gogh Girassóis (detalhe)

Maio é o Mês da Saúde Mental, nos EUA. Saiba mais em mental health america.
Cuide-se. Visite também o site live your life well.