Entrevista de Bárbara Reis a
Daniel Innerarity, que saiu no Jornal Publico de 15.9.13 com o título: As
pessoas que transformam as sociedades são os moderados.
Apresenta-se de momento uma 1ª
Parte, a que destaco as suas palavras: Em muitos casos, os que são
mandados sabem muito mais do que quem governa
"Catedrático e autor, Daniel Innerarity é um optimista por
"uma única razão": para se ser pessimista é preciso estar muito
seguro. E ele tem dúvidas.
Pede para a entrevista ser em castelhano, francês ou alemão.
"O meu pior erro foi não acreditar que a globalização ia ser a sério,
deixei o inglês para trás", diz a rir. Daniel Innerarity, catedrático de
Filosofia Política, basco, 54 anos, é professor nas universidades de Zaragoza e
Sorbonne, e autor de vários livros, alguns dos quais publicados em Portugal
pela Teorema. Com A Transformação da Política (2002) ganhou prémios de ensaio e
entrou na famosa lista dos "25 grandes pensadores do mundo" que a
revista Nouvel Observateur publicou quando fez 40 anos. Innerarity esteve em
Lisboa há uma semana para o colóquio inaugural do novo think tank Institute of
Public Policy Thomas Jefferson-Correia da Serra, dirigido pelo economista Paulo
Trigo Pereira. No elevador, lançámos a proposta: fazermos uma entrevista
monotemática, 100% sobre "a política", pôr "o político"
para cima e para baixo, virá-lo do avesso, de pernas para o ar, abri-lo com um
bisturi e espreitar por dentro. "Bueno, vamos a isso."
B.R: Dedica a sua vida a uma coisa politicamente
incorrecta: fazer o elogio dos políticos e da política. Por que é que a
política é importante?
Provavelmente há uma explicação psicológica. Quando vejo um
linchamento, defendo a pessoa que está a ser linchada. E quando vejo demasiadas
pessoas de acordo em relação a um lugar-comum, começo a pensar que é suspeito.
Segunda explicação: preocupa-me muito que a política esteja a ser mal feita,
mas preocupa-me ainda mais que, numa sociedade livre, a política seja débil.
Durante muitos anos, o grande problema era termos um poder que
se excedia. Esta visão mudou e hoje temos a atitude contrária. A maior parte
dos problemas que temos vêm não do facto de o poder ser demasiado forte, mas do
facto de o poder ser demasiado fraco.
B.R: Por que é que o poder se tornou mais fraco?
Porque o mundo se tornou em algo muito mais complexo. O governo
de sociedades circunscritas por uma fronteira soberana, com uma moeda e uma
disposição à obediência bastante notável (porque as pessoas tinham menos
formação), era um governo relativamente fácil. As sociedades actuais têm muito
mais competências, horizontalizaram-se muito, são muito menos verticais. Por
outro lado, os limites já não limitam. Em Portugal entram a troika, as
alterações climáticas e a imigração. As sociedades são lugares de passagem.
Além disso, os assuntos sobre os quais os políticos têm de decidir têm uma
componente técnica de especialização que os tornam muito difíceis - sistema
financeiro, meio ambiente, sustentabilidade das pensões, que recursos dar à
investigação... São decisões que exigem um grande saber.
B.R: A política precisa dos técnicos, mas os
técnicos não podem dominar a política. Como se sai desta armadilha?
O problema é que o técnico e o político se configuraram como
dois pólos distintos. Os técnicos recomendam - ou impõem - sem terem em conta a
lógica política, e os políticos tomam decisões sem terem em conta os meios, as
condições e as possibilidades técnicas. Esses dois pólos têm que funcionar num
único momento.
B.R: Estarem sempre juntos até à decisão final?
Sim, making sense together. Em vez de serem dois aspectos
separados, têm que trabalhar juntos. Temos que combater a tecnocracia e o
decisionismo dos políticos, nenhum dos poderes pode estar acima do outro.
B.R: Isso não deixa o político numa situação
frágil?
É impossível governar pessoas sem perceber as suas razões, as
suas lógicas, os seus saberes. Já não estamos num mundo no qual quem manda é o
mais esperto da turma e em que os que são mandados não sabem nada. Em muitos
casos, os que são mandados sabem muito mais do que quem governa. É preciso
um diálogo entre os dois.
B.R: Propõe menos poder para os políticos?
Menos hierarquia. Se o fizerem bem, vão estar numa relação menos
hierárquica, menos vertical, mas vão ter mais saber, mais conhecimento, e esse
conhecimento vai trazer mais igualdade. O problema é que estamos assim [levanta
os braços e forma uma balança desequilibrada], com os técnicos com muito mais
poder do que os políticos. Não se trata de inverter isto. Temos que caminhar
para uma sociedade mais horizontal. Hoje ainda pensamos no poder como uma
vertical, alguém que está em cima e alguém que está em baixo. E por isso a
Europa é interessante. E por isso ainda explorámos pouco as formas de compliance,
de aceitação e de governo que não são autoritárias. O facto de haver na Europa
uma dimensão muito consensual de governo está, provavelmente, a permitir-nos
explorar formas de articulação de poder que não são estritamente hierárquicas.
B.R: O que nos mostra o caso Monti/Berlusconi,
no qual o técnico é muitíssimo melhor do que o político, mas que, chegados às
eleições, nos trouxe Berlusconi de volta?
Vivi o ano passado em Itália e acompanhei esse período intensamente.
A entrada de Monti na política tem a ver com a introdução de uma racionalidade
económica num país que estava à beira do abismo. Seria sempre provisória. Durou
o tempo que durou e houve eleições e Berlusconi voltou a ter um grande
protagonismo, porque a Itália é muito berlusconiana. Interpreto-o da seguinte
maneira: o eixo esquerda/direita complicou-se com o aparecimento de um outro
eixo de diferenciação política, que é a tecnocracia/populismo. Que por sua vez
têm as suas próprias versões de direita e de esquerda. Dentro da tecnocracia
(no sentido suave da expressão) há uma linha conservadora (Monti) e uma mais
progressista (Enrico Letta). E do outro lado, temos um populismo de esquerda
(Grillo) e de direita (Berlusconi). Estas são hoje as quatro possibilidades do
político.
B.R: Isso deixa os políticos com poucas
possibilidades: nem os tecnocratas nem os populistas são opções
interessantes...
A chave da questão é como conseguimos vincular estes dois tipos
de legitimidade. Terá êxito o político que for capaz de juntar a competência
técnica e responsabilidade pública ao ser compreendido e apoiado pelas pessoas.
Não é fácil. O mundo das finanças é muito complicado, as pessoas estão
cansadas, há uma grande pressão pelo imediato... Mas esta é a fórmula mágica.
Digo-o publicamente e sem patente!
B.R: Esse vazio torna a política hoje mais
importante do que era, por exemplo, nos anos 1980?
Sim. Há três factores: nos anos 1980 os políticos estavam na
torre de controlo da sociedade, era o mundo das grandes transformações e dos
grandes conflitos em torno da Guerra Fria e de modelos sociais. Hoje, em
ambientes de grande mudança - em cinco anos tivemos prémios de risco das taxas
de juro, conflitos de todo o tipo, desaceleração (há uma grande desaceleração
da História) - a ideia de programa eleitoral, de promessa eleitoral, acabou.
Como dizia um filósofo francês, "acabou a era da promessa". A
promessa que se mantém no tempo, que tem um objectivo de longo prazo, e que
configura um programa e uma identidade, debilitou-se num ambiente em que o
político se dedica a chutar bolas para fora, como os jogadores de futebol. Há
uma parte da política que consiste em improvisar, tratar do curto prazo, vencer
a pequena batalha. Os políticos não podem fazer grandes promessas porque a
situação política não é estável e eles passam a vida a improvisar.
B.R: Sem programas, o político não fica ainda
menos preocupado com o longo prazo?
Eles têm que fazer menos promessas e as que fazem têm que ver
mais com o compromisso pessoal do que com os resultados. Eu posso prometer
esforçar-me para procurar consensos, mas não posso prometer resultados
concretos. Os políticos não podem prometer criar um milhão de postos de
trabalho. Não é sincero. Há uma grande urgência para que a política recupere
uma visão de longo prazo. Se a política se limita a ser uma agregação de
pequenas decisões no curto prazo, acabará por dar resultados incoerentes.
Outro factor é o condicionamento que temos no mundo
interdepen-dente, onde os instrumentos de soberania são muito pouco eficazes.
Todos os políticos estão num espaço político no qual têm a impressão de estar a
ser governados por outros. Estão constantemente a dizer-nos coisas que temos
que fazer. Ou é Merkel, ou são os mercados internacionais, ou os EUA.
Especialmente na Europa, estamos rodeados de exigências que fazemos uns aos
outros, porque sabemos que o que fazemos vai influenciar outros. A reforma
laboral na Alemanha influi imediatamente no crescimento do emprego ou do
desemprego em Portugal. Numa Europa onde estamos a condicionar-nos uns aos
outros continuamente, atirando fardos para os vizinhos, impõe-se um tipo de
atenção ao contexto muito mais amplo do que o contexto nacional - que se tornou
provinciano e pequeno.
B.R: Os cidadãos estão cada vez mais distantes
da política. Quais são as principais causas deste tédio?
Há uma razão: as pessoas estão cada vez mais conscientes de que
a sua influência sobre as decisões políticas nos seus países é muito pequena,
pois a maior parte das decisões tomadas vem fortemente condicionada por factores
exógenos como o sistema financeiro, as obrigações recíprocas entre os países da
União Europeia, as crises. As pessoas vêem que a diferença entre governarem uns
ou outros é pequena. Outro factor é um problema de inteligibilidade: temos
muita dificuldade em compreender o que se está a passar.
B.R: Nós ou os políticos?
Todos. O que se está a passar está a ser mal explicado. Não o
entendem os políticos, não o entendem os cientistas sociais, não o entendem os
filósofos, não o entendem os cidadãos. Provavelmente, há hoje mais
transformações e mudanças do que as nossas capacidades cognitivas conseguem
compreender. Vai demasiado depressa. E por isso é errada a tendência muito na
moda (e um pouco populista) - e aqui falo como cidadão - de dizer que sabemos o
que devia ser feito. Os cidadãos deveriam ser sinceros e reconhecer que também
não sabem o que deve ser feito. Por vezes estamos a criticar o que é feito
pelos políticos com base na ideia de que os cidadãos saberiam perfeitamente o
que deveria ser feito, mas que infelizmente tivemos o azar de nos ter caído em
cima uma classe política que não sabe o que fazer. Este quadro não é real. É um
quadro populista.
B.R: Estamos todos perdidos...
Sim. Mas este é um bom ponto de partida. Dizia Kant: o homem não
sabe exactamente o que quer. É uma grande frase da história da filosofia.
Partamos da ignorância.
Não estamos nos anos 80, quando partíamos de modelos fixos.
B.R: Como é que se sai disto?
(Continua)
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