sábado, 21 de setembro de 2013

ENTREVISTA a Daniel Innerarity #1

 
Entrevista de Bárbara Reis a Daniel Innerarity, que saiu no Jornal Publico de 15.9.13 com o título: As pessoas que transformam as sociedades são os moderados.
Apresenta-se de momento uma 1ª Parte, a que destaco as suas palavras: Em muitos casos, os que são mandados sabem muito mais do que quem governa
"Catedrático e autor, Daniel Innerarity é um optimista por "uma única razão": para se ser pessimista é preciso estar muito seguro. E ele tem dúvidas.
Pede para a entrevista ser em castelhano, francês ou alemão. "O meu pior erro foi não acreditar que a globalização ia ser a sério, deixei o inglês para trás", diz a rir. Daniel Innerarity, catedrático de Filosofia Política, basco, 54 anos, é professor nas universidades de Zaragoza e Sorbonne, e autor de vários livros, alguns dos quais publicados em Portugal pela Teorema. Com A Transformação da Política (2002) ganhou prémios de ensaio e entrou na famosa lista dos "25 grandes pensadores do mundo" que a revista Nouvel Observateur publicou quando fez 40 anos. Innerarity esteve em Lisboa há uma semana para o colóquio inaugural do novo think tank Institute of Public Policy Thomas Jefferson-Correia da Serra, dirigido pelo economista Paulo Trigo Pereira. No elevador, lançámos a proposta: fazermos uma entrevista monotemática, 100% sobre "a política", pôr "o político" para cima e para baixo, virá-lo do avesso, de pernas para o ar, abri-lo com um bisturi e espreitar por dentro. "Bueno, vamos a isso."
B.R: Dedica a sua vida a uma coisa politicamente incorrecta: fazer o elogio dos políticos e da política. Por que é que a política é importante?
Provavelmente há uma explicação psicológica. Quando vejo um linchamento, defendo a pessoa que está a ser linchada. E quando vejo demasiadas pessoas de acordo em relação a um lugar-comum, começo a pensar que é suspeito. Segunda explicação: preocupa-me muito que a política esteja a ser mal feita, mas preocupa-me ainda mais que, numa sociedade livre, a política seja débil.
Durante muitos anos, o grande problema era termos um poder que se excedia. Esta visão mudou e hoje temos a atitude contrária. A maior parte dos problemas que temos vêm não do facto de o poder ser demasiado forte, mas do facto de o poder ser demasiado fraco.
B.R: Por que é que o poder se tornou mais fraco?
Porque o mundo se tornou em algo muito mais complexo. O governo de sociedades circunscritas por uma fronteira soberana, com uma moeda e uma disposição à obediência bastante notável (porque as pessoas tinham menos formação), era um governo relativamente fácil. As sociedades actuais têm muito mais competências, horizontalizaram-se muito, são muito menos verticais. Por outro lado, os limites já não limitam. Em Portugal entram a troika, as alterações climáticas e a imigração. As sociedades são lugares de passagem. Além disso, os assuntos sobre os quais os políticos têm de decidir têm uma componente técnica de especialização que os tornam muito difíceis - sistema financeiro, meio ambiente, sustentabilidade das pensões, que recursos dar à investigação... São decisões que exigem um grande saber.
B.R: A política precisa dos técnicos, mas os técnicos não podem dominar a política. Como se sai desta armadilha?
O problema é que o técnico e o político se configuraram como dois pólos distintos. Os técnicos recomendam - ou impõem - sem terem em conta a lógica política, e os políticos tomam decisões sem terem em conta os meios, as condições e as possibilidades técnicas. Esses dois pólos têm que funcionar num único momento.
B.R: Estarem sempre juntos até à decisão final?
Sim, making sense together. Em vez de serem dois aspectos separados, têm que trabalhar juntos. Temos que combater a tecnocracia e o decisionismo dos políticos, nenhum dos poderes pode estar acima do outro.
B.R: Isso não deixa o político numa situação frágil?
É impossível governar pessoas sem perceber as suas razões, as suas lógicas, os seus saberes. Já não estamos num mundo no qual quem manda é o mais esperto da turma e em que os que são mandados não sabem nada. Em muitos casos, os que são mandados sabem muito mais do que quem governa. É preciso um diálogo entre os dois.
B.R: Propõe menos poder para os políticos?
Menos hierarquia. Se o fizerem bem, vão estar numa relação menos hierárquica, menos vertical, mas vão ter mais saber, mais conhecimento, e esse conhecimento vai trazer mais igualdade. O problema é que estamos assim [levanta os braços e forma uma balança desequilibrada], com os técnicos com muito mais poder do que os políticos. Não se trata de inverter isto. Temos que caminhar para uma sociedade mais horizontal. Hoje ainda pensamos no poder como uma vertical, alguém que está em cima e alguém que está em baixo. E por isso a Europa é interessante. E por isso ainda explorámos pouco as formas de compliance, de aceitação e de governo que não são autoritárias. O facto de haver na Europa uma dimensão muito consensual de governo está, provavelmente, a permitir-nos explorar formas de articulação de poder que não são estritamente hierárquicas.
B.R: O que nos mostra o caso Monti/Berlusconi, no qual o técnico é muitíssimo melhor do que o político, mas que, chegados às eleições, nos trouxe Berlusconi de volta?
Vivi o ano passado em Itália e acompanhei esse período intensamente. A entrada de Monti na política tem a ver com a introdução de uma racionalidade económica num país que estava à beira do abismo. Seria sempre provisória. Durou o tempo que durou e houve eleições e Berlusconi voltou a ter um grande protagonismo, porque a Itália é muito berlusconiana. Interpreto-o da seguinte maneira: o eixo esquerda/direita complicou-se com o aparecimento de um outro eixo de diferenciação política, que é a tecnocracia/populismo. Que por sua vez têm as suas próprias versões de direita e de esquerda. Dentro da tecnocracia (no sentido suave da expressão) há uma linha conservadora (Monti) e uma mais progressista (Enrico Letta). E do outro lado, temos um populismo de esquerda (Grillo) e de direita (Berlusconi). Estas são hoje as quatro possibilidades do político.
B.R: Isso deixa os políticos com poucas possibilidades: nem os tecnocratas nem os populistas são opções interessantes...
A chave da questão é como conseguimos vincular estes dois tipos de legitimidade. Terá êxito o político que for capaz de juntar a competência técnica e responsabilidade pública ao ser compreendido e apoiado pelas pessoas. Não é fácil. O mundo das finanças é muito complicado, as pessoas estão cansadas, há uma grande pressão pelo imediato... Mas esta é a fórmula mágica. Digo-o publicamente e sem patente!
B.R: Esse vazio torna a política hoje mais importante do que era, por exemplo, nos anos 1980?
Sim. Há três factores: nos anos 1980 os políticos estavam na torre de controlo da sociedade, era o mundo das grandes transformações e dos grandes conflitos em torno da Guerra Fria e de modelos sociais. Hoje, em ambientes de grande mudança - em cinco anos tivemos prémios de risco das taxas de juro, conflitos de todo o tipo, desaceleração (há uma grande desaceleração da História) - a ideia de programa eleitoral, de promessa eleitoral, acabou. Como dizia um filósofo francês, "acabou a era da promessa". A promessa que se mantém no tempo, que tem um objectivo de longo prazo, e que configura um programa e uma identidade, debilitou-se num ambiente em que o político se dedica a chutar bolas para fora, como os jogadores de futebol. Há uma parte da política que consiste em improvisar, tratar do curto prazo, vencer a pequena batalha. Os políticos não podem fazer grandes promessas porque a situação política não é estável e eles passam a vida a improvisar.
B.R: Sem programas, o político não fica ainda menos preocupado com o longo prazo?
Eles têm que fazer menos promessas e as que fazem têm que ver mais com o compromisso pessoal do que com os resultados. Eu posso prometer esforçar-me para procurar consensos, mas não posso prometer resultados concretos. Os políticos não podem prometer criar um milhão de postos de trabalho. Não é sincero. Há uma grande urgência para que a política recupere uma visão de longo prazo. Se a política se limita a ser uma agregação de pequenas decisões no curto prazo, acabará por dar resultados incoerentes.
Outro factor é o condicionamento que temos no mundo interdepen-dente, onde os instrumentos de soberania são muito pouco eficazes. Todos os políticos estão num espaço político no qual têm a impressão de estar a ser governados por outros. Estão constantemente a dizer-nos coisas que temos que fazer. Ou é Merkel, ou são os mercados internacionais, ou os EUA. Especialmente na Europa, estamos rodeados de exigências que fazemos uns aos outros, porque sabemos que o que fazemos vai influenciar outros. A reforma laboral na Alemanha influi imediatamente no crescimento do emprego ou do desemprego em Portugal. Numa Europa onde estamos a condicionar-nos uns aos outros continuamente, atirando fardos para os vizinhos, impõe-se um tipo de atenção ao contexto muito mais amplo do que o contexto nacional - que se tornou provinciano e pequeno.
B.R: Os cidadãos estão cada vez mais distantes da política. Quais são as principais causas deste tédio?
Há uma razão: as pessoas estão cada vez mais conscientes de que a sua influência sobre as decisões políticas nos seus países é muito pequena, pois a maior parte das decisões tomadas vem fortemente condicionada por factores exógenos como o sistema financeiro, as obrigações recíprocas entre os países da União Europeia, as crises. As pessoas vêem que a diferença entre governarem uns ou outros é pequena. Outro factor é um problema de inteligibilidade: temos muita dificuldade em compreender o que se está a passar.
B.R: Nós ou os políticos?
Todos. O que se está a passar está a ser mal explicado. Não o entendem os políticos, não o entendem os cientistas sociais, não o entendem os filósofos, não o entendem os cidadãos. Provavelmente, há hoje mais transformações e mudanças do que as nossas capacidades cognitivas conseguem compreender. Vai demasiado depressa. E por isso é errada a tendência muito na moda (e um pouco populista) - e aqui falo como cidadão - de dizer que sabemos o que devia ser feito. Os cidadãos deveriam ser sinceros e reconhecer que também não sabem o que deve ser feito. Por vezes estamos a criticar o que é feito pelos políticos com base na ideia de que os cidadãos saberiam perfeitamente o que deveria ser feito, mas que infelizmente tivemos o azar de nos ter caído em cima uma classe política que não sabe o que fazer. Este quadro não é real. É um quadro populista.
B.R: Estamos todos perdidos...
Sim. Mas este é um bom ponto de partida. Dizia Kant: o homem não sabe exactamente o que quer. É uma grande frase da história da filosofia. Partamos da ignorância. Não estamos nos anos 80, quando partíamos de modelos fixos.
B.R: Como é que se sai disto?
(Continua)

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