Artigo de Margarida David Cardoso que saíu no Jornal Público a 11 de
março de 2019 com o título Drauzio Varella: "O único lugar onde as mulheres têm
liberdade sexual é na cadeia”
“O oncologista brasileiro veio a Lisboa falar da sua experiência de
voluntariado em duas penitenciárias do estado de São Paulo. Na feminina, vê os
instintos de sobrevivência de mulheres subverterem as hierarquias, o abandono
por parte das famílias e uma clara desatenção com a saúde mental.
Quando Drauzio
Varella entrou na Penitenciária Feminina da Capital, no estado brasileiro de
São Paulo, há 13 anos, teve que esquecer quase tudo o que aprendera em 17 numa
prisão masculina. Viu, em profundo contraste com o que se passa com os homens
que conheceu em reclusão, o abandono das mulheres por parte das suas famílias,
a violência do afastamento dos filhos, a subversão das hierarquias. E uma
liberdade sexual que para o médico era completamente nova. “Estou absolutamente
convencido de que o único lugar onde as mulheres têm liberdade sexual é na
cadeia. Não tem outro lugar assim.”
O oncologista
e imunologista, escritor e comunicador de ciência, “talvez o médico mais
conhecido da América Latina”, como o apresentou o neuropediatra Nuno Lobo
Antunes, esteve na sexta-feira no Seminário de Perturbações do Desenvolvimento
no Feminino, em Lisboa, organizado pelo PIN – Progresso Infantil.
Falou
das experiências na prisão feminina onde dá consultas, voluntárias, uma vez por
semana, desde 2006, e sobre as quais escreveu o livro Prisioneiras (2017,
Companhia das Letras), que encerra a sua trilogia sobre prisões, depois de Estação
Carandiru (1999) e Carcereiros (2012).
Ao
todo, a Penitenciária Feminina da Capital tem 2200 reclusas. “Não tendo o homem
que toda a vida a oprimiu e lhe impôs regras, na cadeia a mulher pode ter um
comportamento sexual completamente livre. Pode ter relação com homem, com
mulher, cortar o cabelo, fazer o que ela bem entender. Ninguém critica”,
afirma, em conversa com o PÚBLICO.
A
porta para a discriminação e violência de género está fechada, acredita, uma
vez que a maioria tem comportamentos homossexuais. São independentes da
orientação sexual que algumas mulheres assumiam antes do cárcere. “A
homossexualidade é muito mais abrangente, também mais subtil do que nas prisões
masculinas.” E o que é para si “mais interessante é que as relações são
consensuais”. Não há relação violenta, nem abuso, nem crítica
“Sem
amarras machistas, vê-se a mais profunda e complexa expressão da sexualidade
feminina.” Diferentes identidades e expressões de género encontram um espaço de
respeito. Dinâmicas que Varella demorou a compreender. E, embora desconhecendo
a origem, percebeu que a população prisional sentira necessidade de lhes dar
nome: “sapatão”, apesar depreciativo em contexto de rua, é “usado com o maior respeito”
na prisão, para quem assume uma expressão de género masculina, conta. A maioria
identifica-se como homens trans. “São cerca de 10 a
15% da população presa. Têm o cabelo bem curtinho, com as riscas que jogador de
futebol brasileiro faz, com um jeito de andar tipicamente masculino, usam um
top bem apertado para esconder os seios e não se depilam.” Depois há as
entendidas, as mulheres homossexuais de expressão de género feminina. As
“'activas’ estabelecem as regras na relação de poder, as ‘passivas’ têm o papel
complementar e as ‘relativas’ têm namorada na cadeia e recebem visitas íntimas
de um companheiro homem”.
Não
é a prisão que cria estas dinâmicas. “A cadeia mobiliza o repertório pessoal.
Essas coisas fazem parte da sexualidade feminina”, observa. “Sou formado há
cinquenta anos. Vivi rodeado de mulheres. A irmã mais velha foi uma espécie de
mãe, tenho duas filhas, uma enteada, quatro netas, e toda a vida acompanhei
mulheres com cancro de mama. Na cadeia entendi que eu conhecia nem 10% da
variabilidade que a sexualidade feminina pode ter.”“O amor do homem acaba na porta
da cadeia”
No primeiro dia, deu com uma diferença clara entre a cadeia masculina e
a feminina. Conheceu a reclusa que liderava o pavilhão e lhe falou da exaustão
que sentia por não conseguir apartar tantos desentendimentos. “Numa cadeia de
homens jamais aconteceria.
Os homens são muito ciosos da hierarquia. As
mulheres, por uma necessidade de sobrevivência que vem da infância, estão
acostumadas a subvertê-la.”
É
a sua experiência anterior no Carandiru que lhe permite ter termo de
comparação. Entrou em 1989 para estudar a prevalência e os primeiros casos de
VIH na população reclusa e só saiu com o encerramento do presídio em 2002. A
oficialmente designada Casa de Detenção de São Paulo, chegou a ser a maior
penitenciária da América Latina, cicatrizada pelo massacre de 111 reclusos em
1992 após intervenção da Polícia Militar, na sequência de um motim. Em reacção,
nasceu a rede de crime organizado do PCC - Primeiro Comando da Capital, que
controla os presídios de São Paulo. O médico habituara-se a uma obediência cega
ao seu sistema de leis paralelo ao direito civil, que ninguém escreveu mas
todos respeitam. O líder aparece na galeria e a briga termina. Não há zonas
cinzentas entre o certo e o errado. Os crimes são julgados, os mais graves
punidos com a pena de morte. Só punição severa, argumenta Varella, frena
instintos violentos, contém a barbárie no país que tem a terceira maior
população encarcerada do mundo e um problema de sobrelotação crónico. Não há
argumento para desafiar a ordem interna.
Entre
as mulheres, instintos de aversão à submissão dão às relações hierárquicas uma
complexidade incomparável. A emoção vale tanto como a razão.
Abandono e transtornos psiquiátricos
O contacto com reclusos, ao longo de 30
anos, colocou Drauzio Varella a olhar para a inevitabilidade de alguns
percursos de vida. Especialmente entre as mulheres negras, da periferia, presas
por tráfico de droga. “São as mulheres que sofrem a maior violência da
sociedade. Ainda meninas têm que se virar sozinhas do jeito que der. Têm o
primeiro filho aos 14 anos, deixam de estudar, aos 19 já vem o terceiro. Como
as tias, as mães, vão criar os filhos sozinhas. Na periferia não há homem nas
casas. O que faz uma mulher destas? Como sustenta os filhos? É lógico que
vendendo droga. É o mais fácil, está ali perto de casa. Claro que depois há um
dinheiro e quer comprar um sapato melhor, umas calças de marca, como todos
nós.”
Esse papel nuclear na família desfaz-se
quando a mulher é presa. As diferenças nas relações familiares em comparação
com os homens foram as mais traumáticas que o médico encontrou. Viu mulheres
formarem impressionantes filas à porta da prisão masculina nos domingos de
visita. Algumas a armar pequenas barradas e chegar de véspera para passarem
mais tempo com filhos, netos, namorados, maridos. “Conheci homens que estiveram
uma vida presos - 30 anos é a pena máxima - e todos os domingos receberam
visitas. Já a mulher que cumpre pena, é abandonada. Ninguém vai ver. O amor do
homem acaba na porta da cadeia.” Das 2200 mulheres da Penitenciária Feminina da
Capital, menos de 800 são visitadas. Cerca de 80 recebem visitas íntimas.
Varella conta no livro a história de uma
mãe que viajava várias horas para ver o filho numa cadeia no interior do Estado
e não apanhava o metro para visitar filha encarcerada na prisão central de São
Paulo. “A sociedade é capaz de encarar com alguma complacência a prisão de um
parente homem, mas a da mulher envergonha a família inteira”, escreveu.
Deixar os filhos é, também por isso, um
martírio para muitas mães. Temem que as crianças sofram às mãos de familiares,
que encarreirem o mesmo caminho do crime. “O homem quando está preso sabe que
tem uma mulher cuidando dos filhos. A mulher acha que ninguém vai cuidar dos
filhos como ela seria capaz.” Quando nascem na prisão ou antes da condenação,
os bebés ficam com elas até por volta dos seis meses - tempo mínimo por lei,
que tem sido aplicado como máximo. “Muitas mães chegam à consulta e pedem
hormona para parar de lactar, porque é um sofrimento muito violento.”
Esta
fonte de ansiedade e tristeza é muitas vezes o gatilho que dispara um
transtorno psiquiátrico, como a depressão, ou os ataques de pânico. Ambos são
mais frequentes entre as mulheres presas mas “não lhes é dada atenção nenhuma”,
diz Drauzio Varella.“De
vez em quando uma menina se suicida na cadeira, a população se mexe mas esquece
rapidamente. Provavelmente existem ali pessoas com perturbações do
desenvolvimento [como as patologias do espectro do autismo] muito graves que
passam despercebidos na massa carcerária, porque o atendimento médico é muito
precário.” A prisão da Capital tem um psiquiatra para 2200 mulheres. Os
cuidados médicos circunscrevem-se, em geral, aos ferimentos e patologias
visíveis, imediatas e essencialmente físicas. “Os médicos não gostam de
trabalhar em cadeia. No Carandiru, nos dias em que eu ia, os colegas faltavam.”
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