segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Autoanálise de Fernando Pessoa



Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, datada Lisboa 13 Janeiro de 1935
Meu prezado camarada:
(…)
Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou mais propriamente, um histérico-neurasténico. Tendo para  esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de bulia, que a histeria propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos -  felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim,; quer dizer, não se manifestaram na minha vida prática, exterior e de contato com os outros; fazem explosão para dentro e vivo-os a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas, cada poema de Álvaro de Campos (o mais histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia.
Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo.  Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro – os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.
Desde criança que tive tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas cousas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço, como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.
(…)
Fernando Pessoa, Correspondência 1923 – 35
Ed Manuela P. da Silva, Lisboa Assírio e& Alvim 1999

2 comentários:

Margot disse...

Muito interessante. Não conhecia este texto de F. Pessoa. Obrigada.

cristina simões disse...

Foi um professor de português que teve a generosidade de mo dar.
Obrigada, eu.