Entrevista de António Guerreiro a Samuel Weber
com o título A Europa e as suas pulsões destrutivas, que saiu no Jornal
Publico de 13.07.14:
A noção freudiana de “período de latência” serve ao filósofo americano
Samuel Weber para analisar a história recente da Europa e o sentido das suas
instituições, em função de categorias psicanalíticas e teológicas.
Professor
de Literatura Comparada na Nortwestern University, Samuel Weber faz parte de
uma constelação americana da “Teoria” que atravessa vários campos
disciplinares, a filosofia, a psicanálise, a teoria literária, os estudos
culturais.
A ligação deste universitário americano à filosofia europeia,
continental, fá-lo olhar para a Europa com a distância analítica de um
não-europeu que conhece muito bem a “tarefa infinita” inerente à ideia
europeia, essa ideia que lhe foi destinada pela tradição filosófica, mas que
nunca impediu que este “continente espiritual” fosse o palco e o sujeito da
violência e da barbárie cíclicas.
Autor
de uma vasta obra, onde se destacam títulos como Mass
Mediauras: Form, Technics, Media (1996), Theatricality
as Medium (2004) e Targets
of Opportunity: On the Militarization of Thinking (2005), Samuel Weber esteve em Lisboa
para participar na Summer School of the Study of Culture, uma semana de
palestras e seminários organizado pelo Lisbon Consortium, o programa de
mestrados e doutoramentos em Estudos de Cultura da Faculdade de Ciências
Humanas da Universidade Católica. O título geral da Summer School deste ano foi
“Latências: Europa 1914 -2014”. A noção de latência tornou-se importante nos
estudos culturais, sobretudo por via de um outro americano, Hans Ulrich
Gumbrecht (Professor na Stanford University, e autor deAfter 1945. Latency as Origin of the
Present), que também proferiu uma palestra. Samuel Weber é um
estudioso de Walter Benjamin, traduziu Adorno para inglês e escreveu um livro
sobre Freud. A sua crítica social e política é fortemente marcada por estas
figuras de referência.
O que é um período de latência?
Fui buscar a noção a Freud, que diz, aliás, que não a pode definir de maneira
exacta, na medida em que é algo que se torna invisível. Na teoria freudiana, a
sexualidade infantil é muito activa até mais ou menos aos seis anos. Mas em
seguida, com o complexo de Édipo, a sexualidade da criança fica num estado de
impossibilidade e durante um longo período, até à adolescência, há um recuo da
sexualidade manifesta. A energia sexual não desaparece, mas é utilizada para
outros fins que parecem não sexuais, embora estejam ligados à sexualidade. E a
sexualidade, para Freud, é sempre conflitual. Não é simplesmente a questão do
desejo, mas o desejo que está em conflito com o mesmo e com o outro.
Mas como passa da dimensão da evolução do indivíduo para a
periodização histórica?
A análise de Freud incide nos indivíduos, mas creio que a estrutura que ele
analisa abre para os problemas colectivos, Por exemplo, o problema do complexo
de Édipo: a certa altura ele é bloqueado pelo desenvolvimento daquilo a que
Freud chama o super-ego. E o super-ego é uma instância intra-psíquica,
individual, mas que reflecte toda a história e todo o passado da pessoa. E
portanto é o momento em que os valores colectivos tradicionais entram no quadro
do desenvolvimento individual, em que os valores e as experiências colectivos
passam pelo super-ego, que tem um duplo sentido, em Freud: o sentido da
interdição moral, mas também o sentido da emulação (“é preciso ser assim”).
Essas interdições e esses desejos são canalisados por valores colectivos e
tradicionais, específicos de uma comunidade e cultura, neste caso da Europa.
Trata-se de certos valores europeus, dominados por uma longa tradição em que os
valores cristãos são muito importantes, mas também muito contestáveis.
O período de latência de que fala começa quando?
Começa depois da Segunda Guerra Mundial. Quis-se instaurar instituições
colectivas depois da Primeira Guerra, a Liga das Nações, mas não funcionou
porque os interesses nacionais eram muito fortes e porque impuseram à Alemanha
deveres insustentáveis. A Alemanha foi considerada como a única culpada da Primeira
Guerra, e havia obrigações económicas que tornavam a função das instituições
colectivas quase impossível. Depois, a Segunda Guerra provocou uma tal
devastação que quase atingiu a sobrevivência da Europa. Na Primeira Guerra
houve cerca de 17 milhões de mortos, mas na Segunda foram 60 milhões, mais o
dobro dos deslocados, e uma destruição generalizada. Depois da Segunda Guerra
não se podia continuar a Europa entregue a esses desejos auto-destrutivos e foi
imposto um período que podemos chamar de latência, por analogia com a situação
do indivíduo, segundo a teoria de Freud. Portanto, depois da Segunda Guerra
houve a ambição de criar instituições para inibir e controlar as pulsões
destrutivas, em relação às quais podemos estabelecer um paralelo com as pulsões
sexuais do indivíduo. A ideia de um período de latência, aplicada à Europa,
parece-me interessante, dadas as pulsões destrutivas dominantes. O perigo é que
com o colapso das instituições da União Europeia destinadas a transformar as
pulsões egoístas, narcisistas, individuais, em desejos colectivos, que podemos
identificar com a União Europeia, se dê o retorno de pulsões maioritariamente
destrutivas. É preciso ver de que modo o funcionamento das instituições
esconderam as pulsões essencialmente egoístas das nações. Freud é aqui muito
útil porque ele diz que a tendência civilizadora no período de latência não
está separada do sexual, é apenas um outro modo de os impulsos narcisistas se
dissimularem. Algo semelhante pode já estar a acontecer.
Um período de latência é equivalente a um período de transição?
Sim, mas a questão é: transição para o quê? O modelo freudiano é interessante
porque não tem uma lógica progressiva, teleológica, que implica um avanço
contínuo. A transição pode ser um retorno a algo muito destrutivo, ao qual está
subjacente o narcisismo. O narcisismo individual pode ser transposto para o
narcisismo dos Estados e para o narcisismo do sistema económico, que tem como
fim a maximização do lucro, isto é, da riqueza que pode ser apropriada em termos
privados. A apropriação privada da riqueza através do mercado pode ser vista
como a expressão económica do narcisismo. A ideia que eu defendo é a de que
este modelo narcisista está muito além da Europa, remonta à concepção bíblica
de um Deus singular e exclusivo que responde assim à pergunta de Moisés:
“Eu sou aquele que sou”. Esta ideia de um Eu que é singular e universal é, ao
mesmo tempo, o modelo do narcisismo.
Trata-se, assim, de trazer o teológico para o nosso mundo
secularizado e de fazer dele uma categoria interpretativa...
As categorias teológicas são muitas vezes negligenciadas. Habitualmente, quando
as pessoas falam de economia assumem que vivem num mundo secular e que o
capitalismo, por exemplo, nada tem a ver com a teologia. Tal ideia é desmentida
num famoso texto de Walter Benjamin, O Capitalismo como Religião,
no qual ele argumenta que o capitalismo é o sucessor da religião. A minha
questão é a de que ele é de facto o sucessor da religião, mas no sentido desta
continuidade narcisista em que um Deus se torna o indivíduo apropriador de
riqueza. E apesar da mecanização e automatização generalizadas, pelos
computadores e as tecnologias, o sistema ainda está muito ligado a esse
indivíduo apropriador “humano, demasiado humano”. Por isso é que a sociedade
precisa de imagens e rostos, seja de Bill Gates ou de Warren Buffett. Cada país
conhece o rosto e o nome do seu homem mais rico, isso é muito importante para o
sistema. O sistema, esse, é sem rosto, mas é importante que haja rostos, dos
apropriadores e dos inimigos, o imigrante, o terrorista, o fundamentalista
islâmico...
E assim vamos dar à célebre oposição de Carl Schmitt entre amigo
e inimigo.
Mas os media, sobretudo os media televisivos, são também muito
importantes, pois ajudam a dar um rosto ao sem rosto, e isso permite às pessoas
pensar que vivem num mundo em que podem identificar toda e qualquer coisa com
um rosto. Quando os americanos entraram em guerra contra Saddam Hussein, no
Iraque, difundiram um baralho de cartas, cada uma delas com um rosto do governo
de Saddam.
Voltando à questão inicial: a temporalização da história
acelerou-se de tal modo que podemos perguntar se não é hoje difícil haver tempo
para os períodos de latência.
A noção de aceleração e de velocidade podem estar ligadas a essa questão do
narcisismo. Porque se o narcisismo tem a sua raiz numa concepção de identidade
que pode remontar a um Deus criador monoteológico que se nomeia como “Eu sou
aquele sou”, então isso significa que tudo se reduz ao presente e que o espaço
e o tempo estão fundamentalmente subordinados ao tempo presente. A velocidade
é, assim, um modo de tentar dominar ou superar o tempo, no sentido de uma
auto-identidade, de um “Eu sou aquele que sou”. Os desportos profissionais são
hoje concebidos como mecanismos de auto-produção narcísica. É possível e
importante pensar um conceito não narcisista do Si [self]. Nietzshe talvez o tenha tentado no seu Zaratustra.
Na sua palestra, partiu de um texto importante livro de Derrida
sobre a Europa, L’Autre Cap, onde ele desenvolve de
maneira analítica o problema da identidade. Quanto a isso, a Europa é muito
narcisista...
Isso faz parte dos seus problemas, mas também tem elementos que são o contrário
disso. Penso que é muito importante ver os problemas europeus num contexto
alargado, para que possa ser possível dizer o que é específico deles. Toda esta
onda de privatizações não está só a atacar as estruturas do Estado mas também
as estruturas sociais. A ideia de serviços públicos que não estejam submetidos
ao motivo do lucro é cada vez mais rara. Hoje, a União Europeia quase obriga a
que haja em todos os domínios competição privada. Os antigos serviços sociais
estão, um a um, a ser privatizados. E, neste aspecto, é uma área muito
importante é a das telecomunicações. Uma das grandes diferenças entre os
Estados Unidos e a Europa é o facto de nos Estados Unidos osmedia, e pensemos no mais
importante, que é a televisão, não terem a mínima obrigação em relação à esfera
pública, pelo que todo o sistema político tem de funcionar através do mercado.
O que significa que não se pode existir politicamente sem ter milhões e milhões
de dólares para comprar tempo de antena. Na Europa, há ainda a ideia de que a
televisão e a rádio são de alguma maneira, e num determinado grau, mesmo que
reduzido, públicas. Dão tempo de antena aos candidatos. Nos Estados Unidos,
isso não acontece. E a primeira coisa que se pergunta a um candidato não é
sobre o seu programa político, mas quanto dinheiro é que vai conseguir
angariar. Ao mesmo tempo, é importante perceber que isto pode dar origem a
atitudes contrárias extremamente destrutivas. Já o fascismo era um ataque à
plutocracia. O nazismo, por exemplo, não foi apenas anti-semita, foi também
anti-plutocrata. E tentou estabelecer uma equivalência entre anti-semitismo e
anti-plutocracia. Um dos seus mais poderosos elementos constitutivos era contra
a regra do dinheiro. Mas isso está hoje completamente esquecido. Em vez disso,
a historiografia concentra-se apenas no anti-semitismo e elimina todos os elementos
anti-capitalistas do nazismo. O Partido Nazi foi conscientemente buscar
elementos à crítica socialista do capitalismo. Mas depois converteram-nos numa
política narcisista, em busca do rosto do inimigo: o judeu, o estrangeiro, etc.
O nazismo afastou-se então do modelo monoteísta do
capitalismo...
Sim. O modelo monoteísta é muito importante porque diz que a única coisa que
conta é a relação de si para consigo. E Deus é o exemplo disso. Um modelo
alternativo, incompatível com o modelo monoteísta, seria aquele em que o Eu
depende verdadeiramente da experiência com os outros, com o que vem de outro
lado e está relacionado com outra coisa diferente, com a heterogeneidade. É
isso, precisamente que encontramos em Derrida, em L’autre
cap, o que tem certamente a ver com as suas origens, com a sua
experiência de francês judeu que nasceu e viveu na Argélia.
Falou de algumas diferenças entre a Europa e a América. Continua
a ser pertinente insistir nessas diferenças?
A América, em certa medida, deriva da Europa, mas de uma parte específica da
Europa, aquela que lhe transmitiu o lado protestante, puritano. A essa parte
original veio juntar-se outra, que tema ver com a eliminação brutal das
culturas indígenas. Tudo na América foi centrado numa noção essencialmente protestante
de indivíduo. O indivíduo branco como imagem de Deus. Ainda hoje, Obama fala da
“excepção” americana. A América vê-se a si própria sob a forma de uma pureza
protestante, como a imagem individual e excepcional do divino. Na Europa, a
luta entre protestantes e católicos produziu uma diferente configuração da
relação do indivíduo com o social, o que faz com que a dimensão colectiva seja
muito mais importante. Na América, a única coisa que conta é o indivíduo e tudo
o que acontece é da responsabilidade dele. Se tem sucesso, o mérito é todo
dele, mas se não tem, se perde o emprego, por exemplo, o problema é dele.