A entrevista de Ana Gerschenfeld a Hélène Romano que saiu no Jornal
Publico a 20.11.2015, com o título “É
preciso dar sentido ao medo, torná-lo inteligível”:
“É difícil imaginar o medo
que sentiram – e sentem – os parisienses no rescaldo dos atentados terroristas
de há uma semana na sua cidade. A psicóloga francesa Hélène Romano dá-nos
algumas chaves para o perceber.
Hélène Romano é especialista em psico-traumatismo e
trabalhou durante mais dez anos na célula de urgência médico-psicológica do
Val-de-Marne (arredores de Paris). Lida sobretudo com os problemas das crianças
e das suas famílias na sequência de eventos traumáticos e, nos últimos dias,
tem sido solicitada não só no terreno, mas também pelos media franceses
para aconselhar os pais sobre como explicarem aos seus filhos os ataques
terroristas de 13 Novembro. Em conversa telefónica com o PÚBLICO, falou-nos das
especificidades desse medo – que de terror imediato pode transformar-se numa
coisa tóxica, crónica, que invade e envenena a vida – e de possíveis maneiras
de o controlar.
O principal objectivo do terrorismo é provocar o medo
– o terror – nas populações. Quais são as manifestações específicas do medo na
sequência de atentados como os do 13 de Novembro em Paris?
O medo evolui com o tempo: há o medo no próprio dia, no dia seguinte, há o medo
das crianças, dos adultos. No momento do atentado, o que as pessoas sentem é
mesmo terror, porque não percebem, há um sentimento de irrealidade, de
pesadelo. É um medo a que não conseguimos dar um nome, que não conseguimos
perceber. E nesse instante, pode haver reacções totalmente inadaptadas – por
exemplo, as pessoas não procuram abrigo, estão em negação total, fogem, entram
em pânico.
Passadas 48 horas, começa a haver informação,
começa-se a perceber melhor. A grande maioria das pessoas costuma recuperar
minimamente – e o terror transforma-se num medo mais “razoável”, por assim
dizer, um medo que percebemos porque sabemos o que aconteceu, onde aconteceu e
eventualmente por que aconteceu. É um terror mais elaborado e as nossas
reacções tornam-se mais adaptadas.
É preciso dizer que o medo é uma reacção adaptativa, é
um modo de defesa que inicialmente nos protege, que nos permite permanecer
alerta – é algo de positivo. Mas pode tornar-se tóxico – e podemos dizer que,
nas semanas a seguir, vemos por vezes o medo evoluir e transformar-se num
transtorno. O medo adquire um carácter irrazoável, que se pode manifestar
por perturbações como ansiedade, fobias, atitudes de evitamento, transtornos
obsessivos-compulsivos e ainda outras patologias.
Portanto, o medo tem vários rostos ao longo do tempo.
Passa-se frequentemente de um medo sem nome, que é o terror, a um medo que
começa a ser decodificado – sabemos por que temos medo. E finalmente, em certos
casos, mas não em todos, vemos um medo que se torna patológico, tóxico, e onde
a pessoa fica novamente esmagada, sem capacidade para descrever o porquê e o
como.
Qual é a proporção de pessoas que evoluem desta forma?
Os estudos de acompanhamento de pessoas que foram confrontadas com
acontecimentos traumáticos mostram que cerca de 37% desenvolvem transtornos
persistentes. Não é a maioria, mas é um número substancial.
No primeiro mês, em termos psicopatológicos, não
falamos em transtornos. Nesse período, as reacções de stress agudo são
consideradas como adaptativas. O que não quer dizer que não façamos nada
entretanto: começamos logo a reconfortar as pessoas, a acompanhá-las para que
não fiquem sozinhas, para evitar precisamente que as coisas se tornem
patológicas.
Só começamos a falar em transtornos patológicos
preocupantes quando, volvido pelo menos um mês desde os acontecimentos
traumáticos, os problemas subsistem pelo menos mais um mês. Ou seja, só
consideraremos que os problemas de ansiedade de uma pessoa, decorrentes dos
atentados do 13 de Novembro, se possam tornar patológicos a partir de 13 de
Dezembro. É só falaremos mesmo em transtornos instalados, crónicos, a partir de
13 de Janeiro de 2016.
O que complica a situação é que, por vezes, os
transtornos surgem muito rapidamente, mas noutros casos as pessoas não parecem
perturbadas e só descompensam mais tarde.
Por exemplo, telefonou-me uma amiga que estava em
Paris aquando da onda de atentados de 1995 [atribuídos ao Grupo Islâmico
Armado, entre outros, na estação de metro Saint-Michel]. Tinha sido
ligeiramente ferida, mas tinha ultrapassado bem a situação.
Ela vive hoje na região de Charente (Sudoeste da
França), mas desde os atentados de 13 de Novembro que não consegue sair de
casa, por causa dos pesadelos que tem tido, não sobre estes ataques recentes,
mas sobre os atentados de 1995.
Desenvolveu agora comportamentos fóbicos,
ritualizados, que antes não tinha. Mas os acontecimentos traumáticos que a
assombram remontam a 20 anos!
A minha amiga está actualmente a viver uma situação
insuportável, que invade a sua vida toda. Foi ver um médico, que lhe disse para
ser razoável. Mas é precisamente isso que acontece com os transtornos
pós-traumáticos: manifestam-se muito tempo depois.
Um outro exemplo diz respeito aos atentados de Janeiro
[noCharlie Hebdo]: vemos pessoas que tinham recuperado bastante bem, mas
que agora estão a desmoronar-se completamente, porque os ataques da semana
passada reactivaram angústias de atentados, de insegurança, o sentimento de
terem perdido o controlo da situação.
De facto, qualquer estalido pode reactivar o medo e
suscitar reacções complicadas. E as sirenes de ambulância tornam-se
assustadoras.
Este medo é diferente do medo provocado por outras
vivências traumáticas, tais como acidentes de viação, a morte de pessoas
chegadas, a violência e o abuso sexuais?
A especificidade deste medo é que é provocado por algo que não pode ser
circunscrito, na medida é que um acontecimento destes pode surgir em qualquer
altura.
Isso é gerador de uma grande insegurança psíquica. Por
exemplo, em relação aos atentados nos aviões, as pessoas podem simplesmente
deixar de viajar de avião; e para evitar os acidentes da estrada, basta deixar
de andar de carro. Mas no caso de atentados como os de agora em Paris, a única
solução é não sair à rua. E, a menos que se fique fechado dentro de casa, não
há estratégia de evitamento possível, o que é obviamente complicado e difícil de
suportar.
O medo das pessoas que foram fisicamente atingidas
pelos ataques – os sobreviventes – é diferente do medo daquelas que viram os
ataques na televisão?
É. As pessoas que estavam nos locais atacados viram imagens, cheiraram odores,
ouviram ruídos. Isso é algo de altamente gerador de trauma. As pessoas que
viram os ataques na televisão viram imagens, mas o impacto traumatogénico da
experiência sensorial dos sobreviventes é certamente muito maior.
É possível lutar contra esse medo? Existem estratégias
que permitem controlá-lo?
Há 15 anos que trabalho com vítimas de atentados enquanto especialista de
psico-traumatismos, nomeadamente em meio hospitalar.
A primeira coisa a fazer é não ficar em negação. Mais
vale reconhecer que temos medo e saber o que fazer com ele. Saber como esse
medo se manifesta – e que varia de uma pessoa para outra. De facto, para
controlar melhor o medo é preciso pôr nomes nas coisas. E no caso das crianças,
por exemplo, tentar determinar quando é que o medo de cada uma é mais intenso,
para poder pôr em prática, nessas alturas, estratégias de reconforto.
É preciso dar sentido ao medo, torná-lo inteligível –
e é isso que tentamos fazer no nosso trabalho. E uma vez ultrapassado o estado
de negação, quando as pessoas percebem que não devem ter medo do medo, têm de
se perguntar o que é que mais as ajuda quando têm medo. Em termos pessoais,
individuais, e também em termos colectivos.
É desta forma que conseguimos ajudar uma criança ou um
adulto a recuperar a sua capacidade psíquica de resistir às situações
complicadas. E é isso que fazemos. Não no próprio dia, claro, porque logo a
seguir ao acontecimento é sobretudo preciso dar-lhes reconforto e permitir-lhes
encontrar um ambiente onde se sintam seguros, mas mal começam a surgir transtornos
irracionais.
Em relação às crianças, o que se deve fazer? É
importante falar com elas? Nós próprios temos dificuldade em perceber o sentido
dos atentados, o que dificulta ainda as explicações que podemos dar às
crianças…
Pois. As crianças precisam sobretudo de saber que os seus pais estão lá, que
não os vão deixar cair. O facto de os pais explicarem o que se passa pode
ajudar uma criança de quatro, cinco anos, a perceber por que é que agora, em
Paris, há na rua tantos militares por todo o lado. Porque é um facto que a vida
dos parisienses mudou, pelo menos nalguns bairros. É preciso explicar que há
maus muito, muito maus – pode mesmo falar-se em terroristas e dizer que não são
uns maus quaisquer.
Mas se os pais acharem muito complicado explicar essas
coisas aos filhos, então podem sempre admitir, tanto aos mais pequenos como aos
mais velhos, que acham complicado e que não conseguem explicar, porque não
percebem bem o que está a acontecer.
E, sempre, repetir que estão junto deles, que gostam
muito deles e que nunca os irão abandonar. Abraçá-los e dar-lhes beijinhos para
os reconfortar. Isso dá às crianças um sentimento de segurança, o que já por si
é um passo enorme, enorme.
Mas os pais de crianças mais velhas têm de lhes dar os
meios de se protegerem quando estão na rua.
Sim, e é por isso que, em relação às crianças já com três, quatro anos, que vão
a escola e que vêem o que se passa na rua, convém clarificar as coisas e
explicar que vivemos num contexto particular. Os pequenos sabem o que é a
guerra através dos filmes. Não se trata de lhes dizer que o país
inteiro está em guerra, porque a realidade também não é essa, mas que há actos
de guerra, chamados actos terroristas, explicando-lhes que são pessoas más,
más, más. E a partir dos cinco, seis anos, também é possível transmitir-lhes,
embora elas possam não perceber logo, a ideia de que estes terroristas são
“ideólogos” – que são pessoas que, quando os outros não pensam como elas,
querem destruí-los. E que as vezes até estão dispostos a se destruírem a si próprios
para destruir os outros.
Tudo isso permite dar sentido às coisas. É um pouco
como quando um pai ou uma mãe tem um cancro. Como a palavra cancro mete medo a
toda a gente porque é conotada com a morte, as crianças dizem que o pai ou a
mãe “está doente”. Mas de cada vez que alguém estiver doente, a criança vai
achar que é a mesma coisa. E nós vemos, nas crianças que acompanhamos, que é
mais reconfortante e estruturante pôr as palavras certas nas coisas, e dizer
que a mãe ou o pai tem uma doença muito, muito, muito grave – e eventualmente
rara –, chamada cancro. É uma doença particular. O mesmo vale para as doenças
psiquiátricas. “Não vamos falar em esquizofrenia”, ouvimos dizer, “é muito
complicado!”. Mas em última análise, dizer a uma criança que alguém tem “um
dói-dói na cabeça” não a faz sentir-se mais segura.
Publicou um livro com o neuropsiquiatra francês Boris
Cyrulnik, conhecido pelo seu trabalho sobre a noção de resiliência psicológica.
O que é a resiliência?
A resiliência é a capacidade de se desligar de um impacto traumático. E o que
sabemos através de estudos sobre a resiliência é que não estamos todos em pé de
igualdade nesta matéria.
A resiliência depende dos recursos prévios, do
contexto do trauma e dos recursos disponíveis a seguir. Os recursos prévios são
a capacidade de se proteger. Uma criança que foi criada num clima de confiança
em si e nos outros sabe que, quando acontece um drama, pode contar com os
outros, que não está sozinha no mundo.
Depois há o contexto: durante os atentados, uma
criança que estivesse sozinha, que não tivesse o pai ou a mãe para a
reconfortar, enfrenta agora uma situação extremamente complicada. É o caso, por
exemplo, de um menino que estou actualmente a acompanhar, que tem cinco anos e
que perdeu o pai e a mãe nos ataques de 13 de Novembro.
Quanto aos recursos posteriores, sabemos que uma
criança ou um adulto que consigam reencontrar um ambiente seguro, protector, os
seus marcos de referência, que tenham pessoas que cuidam deles vão sair-se
muito melhor do que alguém que fica sozinho. E mais ainda, quando está com
pessoas que lhe dizem que afinal não está assim tão mal – nem sequer morreu. É
por vezes difícil ser reconhecido como vítima, como ferido psíquico de um
atentado.
Há personalidades mais resilientes do que outras face
a ataques terroristas? Isso pode dar pistas sobre o que fazer para as pessoas
se prepararem para acontecimentos futuros?
A resiliência de que fala Boris é a resiliência individual – e é certo que há
pessoas mais resilientes do que outras. Mas há também um outro tipo de
resiliência, que não é uma ideia nova – e que não faz de todo parte da cultura
francesa. É a noção de resiliência colectiva, isto é, do grupo. A força da
comunidade, da família, a valorização desses aspectos. A França é um país muito
individualista.
Mas tem havido sinais, nos últimos dias, de uma certa
resiliência colectiva por parte dos parisienses.
Sim, e o que esperamos é que a mobilização a que temos assistido nos últimos
dias, com uma identificação mais forte das pessoas do que a seguir ao
ataque ao Charlie Hebdo, permita que as pessoas reaprendam a
cuidar de si e dos outros.
Em Janeiro, para além de a mobilização ter sido mais
limitada (circunscrita a uma certa profissão e a questões religiosas), foi de
curta duração, as pessoas esqueceram. O que esperamos é que agora ela dure mais
do que uns dias.
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