Entrevista a Edgar Morin, Instituto Piaget em Lisboa, Jornal 2, RTP2, 22 Novembro 2019
segunda-feira, 25 de novembro de 2019
sexta-feira, 5 de julho de 2019
A mulher como objeto
imagens publicitárias
A mulher representada anula-se
como pessoa e assume o papel do objeto observado, vendido, comprado e
consumido. Quando as mulheres são objetificadas são também tratadas como corpos
que existem para o uso e o prazer dos outros. O corpo é despojado de
individualidade e personalidade. O primeiro passo em direção da objetivação
sexual é o olhar objetificador. O conceito de objectification (sobre o qual já
tinham falado Catharine MacKinnon e Andrea Dworkin) foi aprofundado pela
filósofa Martha Nussbaum (1999). De acordo com a mesma, as dimensões da
objetificação manifestam-se através de sete características:
- Instrumentalização: o objeto é um instrumento usado pelos outros;
- Negação da autonomia: o objeto é uma entidade sem autonomia e autodeterminação;
- Inércia: o objeto é uma entidade que não conhece a capacidade de agir e de ser ativo;
- Intercambiabilidade: o objeto é intercambiável com outros objetos da mesma categoria;
- Violabilidade: o objeto é uma entidade não íntegra, portanto, é possível reduzi-lo em pedaços;
- Propriedade: o objeto pertence a alguém e pode ser vendido ou emprestado;
- Negação da subjetividade: o objeto é uma entidade cujas experiências e cujos sentimentos são trascuráveis.
Se as mulheres são objetos
sexuais, consequentemente podem ser tratadas como tais, portanto violadas,
abusadas, maltratadas. O controlo sobre o corpo da mulher e sobre a sua
reprodução social continua a constituir um importante ponto não resolvido na
sociedade capitalista e androcêntrica, daí a sua objetificação.
In A imagem violenta gera
violência: viagem através da representação destorcida do corpo feminino na
publicidade italiana. Débora Ricci
Esta comunicação da investigadora Débora Ricci, que eu considero muito interessante, integra o livro Estudos de género. Diversidade de olhares num
mundo global, coordenado por Anália Torres, Dália Costa e Maria João Cunha. O livro tem origem num conjunto selecionado de
comunicações apresentadas no I Congresso Internacional promovido pelo CIEG,
Centro Interdisciplinar de Estudos de Género, do Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP-ULisboa) - disponível em:http://cieg.iscsp.ulisboa.pt/
Nota: as imagens foram retiradas da mesma comunicação
quinta-feira, 13 de junho de 2019
Steven Pinker - Ética, Valores e Política
Debate com Michael Sandel e Steven Pinker, moderado por Gonçalo S. Matias
Debate sobre Ética, Valores e Política com os reconhecidos filósofo Michael Sandel e psicólogo Steven Pinker, no Encontro da Fundação Francisco Manuel dos Santos de 1 de Junho de 2019.
Debate na íntegra, em: https://www.youtube.com/
sexta-feira, 17 de maio de 2019
sábado, 6 de abril de 2019
Paradoxo “Estar em baixo para chegar mais alto”
Ball of Light, Denis Smith
Não é fácil digerir o impacto que pode ter em nós em termos de emoções negativas, constatarmos que em certas circunstâncias, determinadas pessoas com algum poder político, social…ou com pretensões a tal, fingem não nos reconhecer ou dar pela nossa humilde presença.
Por muita teoria sociológica a que possamos recorrer para explicar estes fenómenos, é possível simplificar: todas estas pessoas têm em comum, a preocupação pela sua imagem e a dependência da opinião dos outros. Também têm em comum, a necessidade de manter essa imagem positiva com base nos resultados (muitas vezes fantasiados) das suas atividades ou em aptidões. É também uma forma de se libertarem do medo do ridículo que as atormenta.
No seu livro “A arte de não amargurar a vida – Pensar Bem para Viver Melhor” (um bom livro de auto-ajuda) o psicólogo Rafael Santandreu apresenta um paradoxo que seria a solução para estes comportamentos: “para chegar mais alto é preciso saber estar em baixo e sentir-se bem”.
O caminho é ser capaz de imaginar que é possível ser-se “menos” (como não ser em algumas situações?), ter valor e sentir-se confortável com isso.
Para esta filosofia libertadora, também ajuda concentrar-se no que é realmente importante: a capacidade de amar e fazer coisas úteis e positivas para si e para os outros (estar em "alto"), mesmo sendo pobre, feio, ou desajustado ou.....(estar em "baixo").
Por muita teoria sociológica a que possamos recorrer para explicar estes fenómenos, é possível simplificar: todas estas pessoas têm em comum, a preocupação pela sua imagem e a dependência da opinião dos outros. Também têm em comum, a necessidade de manter essa imagem positiva com base nos resultados (muitas vezes fantasiados) das suas atividades ou em aptidões. É também uma forma de se libertarem do medo do ridículo que as atormenta.
No seu livro “A arte de não amargurar a vida – Pensar Bem para Viver Melhor” (um bom livro de auto-ajuda) o psicólogo Rafael Santandreu apresenta um paradoxo que seria a solução para estes comportamentos: “para chegar mais alto é preciso saber estar em baixo e sentir-se bem”.
O caminho é ser capaz de imaginar que é possível ser-se “menos” (como não ser em algumas situações?), ter valor e sentir-se confortável com isso.
Para esta filosofia libertadora, também ajuda concentrar-se no que é realmente importante: a capacidade de amar e fazer coisas úteis e positivas para si e para os outros (estar em "alto"), mesmo sendo pobre, feio, ou desajustado ou.....(estar em "baixo").
Quando nos cruzarmos com pessoas que só nos
conhecem quando lhes convém, talvez seja melhor pensarmos que elas não sabem o
segredo: que é possível não se precisar de ser “alto”, para se sentir poderoso, e
ser essencial na vida de alguém, até num encontro breve com um desconhecido.
domingo, 17 de março de 2019
Coimbra de Matos: hoje aparecem-me muitos pacientes por perturbações no trabalho
(...)
“Com 89 anos, o
psicanalista António Coimbra, detecta transformações claras nos desabafos de
divã dos seus doentes: “Dantes procuravam-me por dificuldades nas relações
amorosas e familiares, hoje aparecem-me muitos pacientes por perturbações no
trabalho. As pessoas estão em burnout,
em conflito com as empresas onde trabalham, a vida profissional tornou-se má”,
conta, para acrescentar que, se antigamente o alvo dessa zanga era um patrão
claramente identificado, “hoje as pessoas nem sabem quem é que as oprime, são
sociedades anónimas. O inimigo é anónimo, está nas nuvens”. E isso,
conclui, “não lhes permite exercer ou direccionar a agressividade”.
A montante, prescreve
ainda, há tarefa preventiva fundamental: “É importante que as escolas comecem
desde cedo a desenvolver o pensamento crítico: que haja menos aulas clássicas e
mais tempo de diálogo; que ponham os alunos a investigar e a procurar os
problemas. Se for uma aula de Botânica, levem-nos para o Parque de Monsanto”,
desafia. O importante é que haja toque, “contacto directo com a realidade”,
porque “é na relação com as coisas, as pessoas, o mundo, que as aprendizagens
se fazem”.
(...)
Natália Faria, Jornal Publico, 5
de março de 2019, #Hashtag Portugal:
“Os nossos populistas são muito estúpidos” https://www.publico.pt/
Imagem ISPA
terça-feira, 12 de março de 2019
Drauzio Varella: "O único lugar onde as mulheres têm liberdade sexual é na cadeia”
Artigo de Margarida David Cardoso que saíu no Jornal Público a 11 de
março de 2019 com o título Drauzio Varella: "O único lugar onde as mulheres têm
liberdade sexual é na cadeia”
“O oncologista brasileiro veio a Lisboa falar da sua experiência de
voluntariado em duas penitenciárias do estado de São Paulo. Na feminina, vê os
instintos de sobrevivência de mulheres subverterem as hierarquias, o abandono
por parte das famílias e uma clara desatenção com a saúde mental.
Quando Drauzio
Varella entrou na Penitenciária Feminina da Capital, no estado brasileiro de
São Paulo, há 13 anos, teve que esquecer quase tudo o que aprendera em 17 numa
prisão masculina. Viu, em profundo contraste com o que se passa com os homens
que conheceu em reclusão, o abandono das mulheres por parte das suas famílias,
a violência do afastamento dos filhos, a subversão das hierarquias. E uma
liberdade sexual que para o médico era completamente nova. “Estou absolutamente
convencido de que o único lugar onde as mulheres têm liberdade sexual é na
cadeia. Não tem outro lugar assim.”
O oncologista
e imunologista, escritor e comunicador de ciência, “talvez o médico mais
conhecido da América Latina”, como o apresentou o neuropediatra Nuno Lobo
Antunes, esteve na sexta-feira no Seminário de Perturbações do Desenvolvimento
no Feminino, em Lisboa, organizado pelo PIN – Progresso Infantil.
Falou
das experiências na prisão feminina onde dá consultas, voluntárias, uma vez por
semana, desde 2006, e sobre as quais escreveu o livro Prisioneiras (2017,
Companhia das Letras), que encerra a sua trilogia sobre prisões, depois de Estação
Carandiru (1999) e Carcereiros (2012).
Ao
todo, a Penitenciária Feminina da Capital tem 2200 reclusas. “Não tendo o homem
que toda a vida a oprimiu e lhe impôs regras, na cadeia a mulher pode ter um
comportamento sexual completamente livre. Pode ter relação com homem, com
mulher, cortar o cabelo, fazer o que ela bem entender. Ninguém critica”,
afirma, em conversa com o PÚBLICO.
A
porta para a discriminação e violência de género está fechada, acredita, uma
vez que a maioria tem comportamentos homossexuais. São independentes da
orientação sexual que algumas mulheres assumiam antes do cárcere. “A
homossexualidade é muito mais abrangente, também mais subtil do que nas prisões
masculinas.” E o que é para si “mais interessante é que as relações são
consensuais”. Não há relação violenta, nem abuso, nem crítica
“Sem
amarras machistas, vê-se a mais profunda e complexa expressão da sexualidade
feminina.” Diferentes identidades e expressões de género encontram um espaço de
respeito. Dinâmicas que Varella demorou a compreender. E, embora desconhecendo
a origem, percebeu que a população prisional sentira necessidade de lhes dar
nome: “sapatão”, apesar depreciativo em contexto de rua, é “usado com o maior respeito”
na prisão, para quem assume uma expressão de género masculina, conta. A maioria
identifica-se como homens trans. “São cerca de 10 a
15% da população presa. Têm o cabelo bem curtinho, com as riscas que jogador de
futebol brasileiro faz, com um jeito de andar tipicamente masculino, usam um
top bem apertado para esconder os seios e não se depilam.” Depois há as
entendidas, as mulheres homossexuais de expressão de género feminina. As
“'activas’ estabelecem as regras na relação de poder, as ‘passivas’ têm o papel
complementar e as ‘relativas’ têm namorada na cadeia e recebem visitas íntimas
de um companheiro homem”.
Não
é a prisão que cria estas dinâmicas. “A cadeia mobiliza o repertório pessoal.
Essas coisas fazem parte da sexualidade feminina”, observa. “Sou formado há
cinquenta anos. Vivi rodeado de mulheres. A irmã mais velha foi uma espécie de
mãe, tenho duas filhas, uma enteada, quatro netas, e toda a vida acompanhei
mulheres com cancro de mama. Na cadeia entendi que eu conhecia nem 10% da
variabilidade que a sexualidade feminina pode ter.”“O amor do homem acaba na porta
da cadeia”
No primeiro dia, deu com uma diferença clara entre a cadeia masculina e
a feminina. Conheceu a reclusa que liderava o pavilhão e lhe falou da exaustão
que sentia por não conseguir apartar tantos desentendimentos. “Numa cadeia de
homens jamais aconteceria.
Os homens são muito ciosos da hierarquia. As
mulheres, por uma necessidade de sobrevivência que vem da infância, estão
acostumadas a subvertê-la.”
É
a sua experiência anterior no Carandiru que lhe permite ter termo de
comparação. Entrou em 1989 para estudar a prevalência e os primeiros casos de
VIH na população reclusa e só saiu com o encerramento do presídio em 2002. A
oficialmente designada Casa de Detenção de São Paulo, chegou a ser a maior
penitenciária da América Latina, cicatrizada pelo massacre de 111 reclusos em
1992 após intervenção da Polícia Militar, na sequência de um motim. Em reacção,
nasceu a rede de crime organizado do PCC - Primeiro Comando da Capital, que
controla os presídios de São Paulo. O médico habituara-se a uma obediência cega
ao seu sistema de leis paralelo ao direito civil, que ninguém escreveu mas
todos respeitam. O líder aparece na galeria e a briga termina. Não há zonas
cinzentas entre o certo e o errado. Os crimes são julgados, os mais graves
punidos com a pena de morte. Só punição severa, argumenta Varella, frena
instintos violentos, contém a barbárie no país que tem a terceira maior
população encarcerada do mundo e um problema de sobrelotação crónico. Não há
argumento para desafiar a ordem interna.
Entre
as mulheres, instintos de aversão à submissão dão às relações hierárquicas uma
complexidade incomparável. A emoção vale tanto como a razão.
Abandono e transtornos psiquiátricos
O contacto com reclusos, ao longo de 30
anos, colocou Drauzio Varella a olhar para a inevitabilidade de alguns
percursos de vida. Especialmente entre as mulheres negras, da periferia, presas
por tráfico de droga. “São as mulheres que sofrem a maior violência da
sociedade. Ainda meninas têm que se virar sozinhas do jeito que der. Têm o
primeiro filho aos 14 anos, deixam de estudar, aos 19 já vem o terceiro. Como
as tias, as mães, vão criar os filhos sozinhas. Na periferia não há homem nas
casas. O que faz uma mulher destas? Como sustenta os filhos? É lógico que
vendendo droga. É o mais fácil, está ali perto de casa. Claro que depois há um
dinheiro e quer comprar um sapato melhor, umas calças de marca, como todos
nós.”
Esse papel nuclear na família desfaz-se
quando a mulher é presa. As diferenças nas relações familiares em comparação
com os homens foram as mais traumáticas que o médico encontrou. Viu mulheres
formarem impressionantes filas à porta da prisão masculina nos domingos de
visita. Algumas a armar pequenas barradas e chegar de véspera para passarem
mais tempo com filhos, netos, namorados, maridos. “Conheci homens que estiveram
uma vida presos - 30 anos é a pena máxima - e todos os domingos receberam
visitas. Já a mulher que cumpre pena, é abandonada. Ninguém vai ver. O amor do
homem acaba na porta da cadeia.” Das 2200 mulheres da Penitenciária Feminina da
Capital, menos de 800 são visitadas. Cerca de 80 recebem visitas íntimas.
Varella conta no livro a história de uma
mãe que viajava várias horas para ver o filho numa cadeia no interior do Estado
e não apanhava o metro para visitar filha encarcerada na prisão central de São
Paulo. “A sociedade é capaz de encarar com alguma complacência a prisão de um
parente homem, mas a da mulher envergonha a família inteira”, escreveu.
Deixar os filhos é, também por isso, um
martírio para muitas mães. Temem que as crianças sofram às mãos de familiares,
que encarreirem o mesmo caminho do crime. “O homem quando está preso sabe que
tem uma mulher cuidando dos filhos. A mulher acha que ninguém vai cuidar dos
filhos como ela seria capaz.” Quando nascem na prisão ou antes da condenação,
os bebés ficam com elas até por volta dos seis meses - tempo mínimo por lei,
que tem sido aplicado como máximo. “Muitas mães chegam à consulta e pedem
hormona para parar de lactar, porque é um sofrimento muito violento.”
Esta
fonte de ansiedade e tristeza é muitas vezes o gatilho que dispara um
transtorno psiquiátrico, como a depressão, ou os ataques de pânico. Ambos são
mais frequentes entre as mulheres presas mas “não lhes é dada atenção nenhuma”,
diz Drauzio Varella.“De
vez em quando uma menina se suicida na cadeira, a população se mexe mas esquece
rapidamente. Provavelmente existem ali pessoas com perturbações do
desenvolvimento [como as patologias do espectro do autismo] muito graves que
passam despercebidos na massa carcerária, porque o atendimento médico é muito
precário.” A prisão da Capital tem um psiquiatra para 2200 mulheres. Os
cuidados médicos circunscrevem-se, em geral, aos ferimentos e patologias
visíveis, imediatas e essencialmente físicas. “Os médicos não gostam de
trabalhar em cadeia. No Carandiru, nos dias em que eu ia, os colegas faltavam.”
Imagem: https://telepadi.folha.uol.com.br
sábado, 2 de março de 2019
TSF: programa Duplo Sentido
"O homem que explode de raiva" é um caso clínico fictício. Foi criado pelos autores para o programa Duplo Sentido, baseado na literatura científica e académica. Qualquer semelhança com a realidade é uma coincidência.
Duplo Sentido, é um programa de Mésicles Hélin e Vítor Cotovio, com a participação de Nuno Domingues, Rita Costa e Guilhermina Sousa. A sonoplastia é de Miguel Silva.
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019
Os ecrãs impedem os jovens de desenvolver empatia. E as sociedades tornam-se "brutais"
Artigo do
Jornal Publico da autoria de Alexandra Prado Coelho, publicado a 2 de Fevereiro
de 2019, com o título Os
ecrãs impedem os jovens de desenvolver empatia. E as sociedades tornam-se
"brutais":
A resiliência constrói-se.
Num ambiente de segurança, o cérebro de alguém que sofreu um trauma regenera-se
“muito mais rapidamente do que imaginamos”. Mas, atenção, avisa o psiquiatra
Boris Cyrulnik, uma criança que cresce a olhar para ecrãs não consegue desenvolver
empatia.
A nossa capacidade de resistência à adversidade – a
chamada resiliência – não está inscrita nos genes. Não nascemos com uma
determinada predisposição, antes somos moldados pelo ambiente desde o útero
materno e pela vida fora, e é isso que nos torna mais ou menos resilientes.
O defensor desta ideia, o neuropsiquiatra francês Boris
Cyrulnik – que esteve em Portugal esta semana para fazer uma conferência na
Noite das Ideias, iniciativa da Embaixada de França e do Instituto Francês, dia
31 de Janeiro, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa – sabe do que fala.
Ele próprio é um exemplo de resiliência e tornou-a o tema principal das suas
pesquisas e do seu trabalho de toda a vida.
Hoje com 81 anos, este sobrevivente do Holocausto tem
trabalhado com pessoas, sobretudo crianças e jovens, que passaram por situações
traumáticas. “A resiliência”, diz, “é uma construção constante, é um fenómeno
de desenvolvimento e nós desenvolvemo-nos o tempo todo, a nível biológico,
psicológico, afectivo, social.” E acrescenta, com um sorriso de garoto: “Só
paramos de nos desenvolver aos 120 anos. Depois disso, é possível, mas é
difícil.”
Muito do processo de regeneração de um cérebro que
sofreu um trauma passa pela segurança mas também pela empatia com os outros.
Ora, actualmente, com a presença constante da tecnologia nas nossas vidas, é
precisamente a capacidade de criação de empatia que começa a estar em risco. E
que consequências isso tem para uma sociedade?
"Uma pessoa nunca
pode ser reduzida ao seu trauma"
Antes
de entrarmos por aí, vamos começar por perceber o que pode afectar, positiva e
negativamente, o nosso cérebro desde o início da vida. O poder dos genes, ou
seja, o determinismo genético, tem o seu momento alto “no encontro do
espermatozóide com o óvulo”, depois disso é o meio que começa a agir sobre o
jovem feto. “Há meios que orientam [a criança] para a aquisição de factores de
protecção e outros para a aquisição de factores de vulnerabilidade. Se a mãe
está stressada, segrega substâncias que passam no líquido amniótico e o bebé
adquire esses factores de vulnerabilidade. Se a mãe se sente segura e feliz, o
bebé desenvolve-se bem e tem factores de protecção.”
A forma como, por exemplo, essas substâncias
segregadas pela mãe alteram o cérebro do bebé pode ser observada em exames
neurológicos. As crianças afectadas pelo stress materno “nascem com uma
alteração dos dois lóbulos pré-frontais e do sistema límbico e a amígdala do
cérebro reage muito fortemente”. Isto significa que “chegam ao mundo com uma
alteração cognitiva pela situação de precariedade social da mãe”.
Um ambiente onde a criança se sinta protegida é, por
isso, essencial. A boa notícia é que “o cérebro regenera muito rapidamente”.
Mesmo um trauma profundo pode curar-se “muito mais facilmente do que
imaginamos”. A consciência disso deve-se, em grande parte, ao trabalho que
Cyrulnik desenvolveu. “Antes dizíamos sobre estas crianças, é genético, não
vale a pena preocupar-nos com elas. E não nos ocupávamos. Hoje rodeamo-las de
segurança e a resiliência regressa. Em 48 horas começam a segregar hormonas de
crescimento e hormonas sexuais, sejam masculinas ou femininas. Mas se não os
rodearmos de segurança passam a vida toda em sofrimento”
Boris Cyrulnik tinha sete anos quando perdeu os pais,
levados pelos nazis para Auschwitz, onde morreram. Antes de ser detida, a mãe
confiou o rapaz a uma família, que acabou por o entregar também aos alemães.
Conseguiu escapar, escondendo-se numa sinagoga, da qual acabou por conseguir
fugir, tendo trabalhado numa quinta para conseguir sobreviver até ao final da
guerra. Só aos dez anos é que foi entregue a uma família que o criou.
Depois disso, as tentativas que fez para falar da sua
situação depararam com um muro de indiferença. Os franceses não queriam ouvir,
da boca de uma das vítimas, a história de como tinham abandonado e condenado à
morte crianças judias. Num país também ele profundamente traumatizado, Boris
Cyrulnik percebeu que não valia a pena insistir em contar a sua história. Mas
foi também esta experiência que o fez perceber que queria ser psiquiatra.
A ideia de que uma criança, por maior que seja o
trauma que sofreu, não pode ser ajudada a ultrapassá-lo é o que mais o indigna
– e, trabalhando com órfãos na Roménia, vítimas de genocídio no Ruanda, ou
crianças-soldado na Colômbia, foi reforçando essa convicção. “Uma pessoa nunca
pode ser reduzida ao seu trauma”, costuma dizer.
Há, contudo, outros factores que devem ser tidos em
conta – a diferença entre rapazes e raparigas, por exemplo, que se nota logo no
desenvolvimento nos primeiros anos de vida. “As raparigas começam a falar cerca
de cinco meses antes dos rapazes. Porquê, não sei. Mas é um factor de
protecção, porque quando estão infelizes podem dizê-lo, podem pedir ajuda,
enquanto os rapazes não sabem dizê-lo e passam à acção mais rapidamente.” Passagem
à acção que vão manter como característica de comportamento ao longo da vida.
Quando chegam à adolescência, “as raparigas, que têm
uma biologia mais estável, têm um avanço neuropsicológico de cerca de dois anos
relativamente aos rapazes”. Não só falam melhor, como são “mais estáveis
emocionalmente” e já terminaram a sua “fadiga de crescimento”.
Nas décadas seguintes,
nota-se que as raparigas e as mulheres “aprendem os rituais de interacção
melhor que os rapazes” e continuam a “dominar a palavra” – se isso ainda não
parece ser evidente no espaço público, onde a visibilidade das mulheres
continua a ser menor, Boris Cyrulnik acha que é apenas uma questão de tempo:
“Há aí [nessa invisibilidade] um grande determinismo social. Mas penso que isso
vai desaparecer em dez anos”.
O domínio masculino no espaço público está ligado à
força física e à violência. “A violência foi um factor adaptativo em todas as
culturas. Muitos sociólogos dizem que é pela violência que a sociedade se
constitui. Se os homens não fossem violentos, a espécie humana teria
desaparecido”.
Na sua infância e juventude, durante a II Guerra
Mundial, “o trabalho era uma forma de violência, 15 horas por dia, seis dias
por semana”. Recorda as vidas duríssimas dos mineiros em França ou dos
operários dos estaleiros navais. “Era um trabalho de uma violência extrema, os
operários tinham as costas feridas pelos pedaços de carvão que lhes caiam em
cima, as mulheres tinham que os lavar para evitar as infecções e para que eles
pudessem ir trabalhar no dia seguinte, senão, não haveria dinheiro nem comida.”
A força e a violência eram, portanto, essenciais e
isso fazia com que os homens fossem “vistos como heróis”, sendo, por isso
mesmo, “sacrificados na mina ou na guerra”. Esta violência adaptativa não faz
sentido nas actuais sociedades ocidentais como a europeia, por exemplo, mas
continua a fazer sentido em países em guerra. A diferença é clara: “A violência
é destruição num contexto de paz mas é construção social num contexto de
guerra”. Daí que no Médio Oriente “um rapaz que não é violento, é desprezado,
pela mãe, a mulher, os outros rapazes”.
“No mundo actual [ocidental], o sector terciário
desenvolveu-se, a escola também, as mulheres têm desempenhos iguais ou
superiores aos homens e a violência já não tem valor de construção da
sociedade, é apenas destruição”, explica. “Mas isso só acontece desde os anos
60 do século XX. Eu nasci em 1937, faço parte de uma geração na qual apenas 3%
das crianças estudavam. Os outros iam trabalhar, com 12, 13 anos, os rapazes para
a mina, as raparigas para casa, e a maternidade acontecia aos 16, 17 anos. Hoje
isso é impensável.”
E, no entanto, mesmo que desadaptada ao contexto
actual, a violência contínua de certa forma inscrita na nossa “memória
transgeracional” – pronta a renascer assim que for necessária. “Acontece nas
sociedades que se afundam, por exemplo, o Brasil, a Venezuela, que estavam numa
curva ascendente e a violência era muito combatida, sobretudo pelas mulheres,
porque se manifestava apenas na destruição do casal, da família, da sociedade.”
Quando a crise económica faz afundar o país, “a violência reaparece e torna-se
um valor adaptativo e nesse contexto um homem que não é violento é
imediatamente eliminado”.
Ao longo da sua carreira, Cyrulnik viu muitas
situações nas quais esses instrumentos de adaptação da espécie humana vinham ao
de cima, tanto a violência como, por outro lado, a solidariedade. E percebeu
que são valorizados de forma diferente conforme o contexto. No entanto, nota, a
solidariedade que surge nessas circunstâncias é geralmente “de clã, de grupos
com as mesmas crenças religiosas, a mesma cultura, a mesma cor de pele, o mesmo
nível social”.
Quanto à violência, “nas guerras condecoramos os
psicopatas quando matam um adversário, e em alturas de paz colocamo-los na
prisão – eles são sempre psicopatas, é o meio que valoriza, ou não, a passagem
ao acto”.
Esta
presença da violência, que “atravessa todas as culturas”, ajuda a perceber
também a vitimização da mulher. “Elas sofreram, foram massacradas, porque são menos
dotadas para a violência”. Por outro lado, quando a situação piora e a
violência se torna novamente adaptativa, “as mulheres valorizam os homens
violentos e querem estabelecer laços com eles”. O que acontece hoje, em
contextos de paz, é que “as mulheres, que foram de facto vítimas, e algumas
ainda são, servem-se da noção de vítima para tomar o poder e legitimar a
própria violência, que não é física, mas verbal”.
O bebé “precisa do
cheiro” da mãe
Está
também a surgir nas nossas sociedades outro fenómeno que preocupa o
psicanalista: a dificuldade de desenvolver empatia, que afecta sobretudo os
mais jovens. A empatia é algo que implica interacção humana, sublinha. E quando
grande parte da relação com o mundo é feita não através de outros seres humanos
mas sim de ecrãs de televisões, computadores ou telemóveis, é muito mais
difícil aprender a empatia.
E, no
entanto, esta é algo que um bebé recém-nascido adquire com uma surpreendente
facilidade. “Os bebés compreendem imediatamente a menor variação da mímica facial
da mãe, desde muito pequenos. Somos uns virtuosos, únicos entre as espécies
vivas a lidar com a mímica facial.” Daí que seja difícil criar um robot que
possa realmente substituir uma pessoa.
Mas,
relativamente à tecnologia, Cyrunik não tem uma posição redutora. “Tinha um
amigo com uma clínica de hemodiálise e duas ou três vezes por semana as pessoas
dormiam na clínica e criavam laços com a máquina, queriam sempre a mesma porque
já conhecia as reacções deles. Como na psicanálise, havia uma relação transferencial.”
Por outro lado, “quando as crianças são criadas com
ecrãs, são privadas da interacção, das palavras, do piscar de olhos, dos
sorrisos; com um ecrã não há rituais de interacção”. Isso faz com que “tenham
um atraso no desenvolvimento da linguagem quase como uma criança autista, não
sabem descodificar as interacções, se alguém lhes sorri não compreendem, não
aprendem os pequenos gestos que nos permitem viver juntos, socializam mal,
tornam-se impulsivos”. Um bebé, frisa Cyrulnik, “precisa do cheiro, do calor
dos braços da mãe”.
Se um bebé “é isolado antes de adquirir a palavra, o
que acontece até aos 21 meses, há uma atrofia dos lóbulos pré-frontais e dos
anéis límbicos”. São crianças que crescem “com um cérebro moldado pelo fracasso
social e cultural” e “não conseguem controlar as suas emoções”.
Por isso, a ligação que muitos jovens (e não só)
estabelecem hoje com esses ecrãs omnipresentes preocupa-o. “Já há
consequências. Os jovens que passam mais de três horas por dia em frente a
ecrãs mexem-se menos, encontram-se menos com os outros, têm mais depressões e,
sobretudo, param o desenvolvimento da empatia – a aptidão a descentrarem-se de
si próprios para conseguir a representação do mundo mental dos outros”.
A ausência de empatia manifesta-se, diz Cyrulnik, na
forma como muitas pessoas “não estão atentas aos outros”. “No metro de Paris,
por exemplo, isso é flagrante. Estão no meio da porta e não se mexem quando os
outros querem entrar ou sair. Estão centrados neles mesmos porque a escola
centrou-os sobre eles mesmos, os ecrãs também e aprenderam mal os rituais de
interacção”.
O exemplo do metro pode ser menor, mas Cyrulnik
confirmou esta constatação noutras situações mais graves. Recorda um rapaz que,
no hospital e quando uma pessoa da família acabara de morrer e os outros
familiares choravam, ria a olhar para alguma coisa no telemóvel. Ou outro que
assaltara uma senhora que caíra acabando por morrer em consequência de uma
pancada na cabeça e que respondia apenas que “se ela tivesse largado a mala não
teria morrido”.
"Sociedades
brutais"
Uma
sociedade com menores níveis de empatia é necessariamente mais perigosa,
conclui. “Os psicopatas podem matar, roubar, violar, sem culpabilidade”. Por
isso defende a necessidade de se desenvolver uma “pedagogia da empatia”, que
deve começar nas escolas, para explicar que “não nos podemos permitir tudo”.
Tal como é preciso perceber que “se um rapaz tem um desejo sexual não pode
permitir-se tudo”, também uma rapariga que não esteja interessada nele “não
pode permitir-se tudo, não pode humilhá-lo”.
Conseguirmos
colocar-nos no lugar do outro – é isso a empatia e também, segundo Cyrulnik, a
base da moralidade – ajuda a perceber que nem tudo é possível. “Temos, como
sociedade, que ter uma maior consciência disso”. Em França, após a I Guerra
Mundial havia um enorme número de órfãos e “praticamente todos conseguiram
rapidamente uma família de acolhimento”. Hoje, nessa mesma França, em paz,
“passam 16 meses entre o alerta de que uma criança está em risco e o momento em
que vai encontrar uma família, e são 16 meses em que a criança é infeliz”. A
ausência de empatia, avisa, “faz sociedades brutais”.
domingo, 20 de janeiro de 2019
O que é crescer
Antonio Canova, Hercules and Lica
“Crescer é tolerar”
Eduardo Sá, em conferência no Funchal
Costuma-se dizer que o crescimento traz mais paciência. Mas tenho
pensado ultimamente sobre o que é deveras crescer quando surpreendentemente nos começa a faltar, como nunca dantes, paciência para muita coisa.
A saturação não se sente quando chega. Brota de um modo
rápido e intuitivo, é intempestiva mas nem sempre indisciplinada, porque consegue-se
conviver, tolerar, esses incidentes, se tiver de ser, sem poluirmos o espaço
público com os nossos produtos mentais.
Crescer não está associado a perdas de entusiasmo, da
curiosidade, da abertura ao novo. Pelo contrário, descobre-se que estamos dotados
de uma rara sensibilidade. Triunfam agora as emoções porque não são exageradas.
A falta de paciência deve-se à exigência de resumir a vida
ao essencial, depurar, junto com o saber para onde nunca mais se quer voltar, e dando mais valor à existência como um todo.
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