domingo, 1 de maio de 2011

Trindade Santos

Anabela Mota Ribeiro entrevista o filósofo José Gabriel Trindade Santos. Dessa entrevista publicada na Publica, hoje, transcrevo alguns retalhos.
José Gabriel Trindade tem quase 70 anos. Doutorou-se em Platão.
Anabela Mota Ribeiro apresenta-o: O seu primeiro livro foi Filosofia no Liceu ("que ainda hoje é citado, para dizer bem e para dizer mal, como todos"). Tem uma obra extensa, traduções do grego, análise crítica. Ainda este ano deve ser publicada uma tradução do Sofista de Platão, de cujo projecto é o coordenador geral.
Vive no Brasil,  desde 2003, e ensina na Universidade Federal da Paraíba.
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O que entende por estupidez, neste contexto (de Antígona)?
Trindade Santos: A estupidez é a incapacidade de distinguir o essencial do acessório, a incapacidade de estabelecer uma prioridade, de perceber o que está em causa num problema. É o caso da Antígona. Creonte põe a sua prioridade à frente das outras. Não vê os sinais, não ouve os avisos; vai em frente, fiel apenas ao desígnio que traçou. A consequência é a morte, primeiro, da mulher e, depois, do filho.
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"Só sei que nada sei", parafraseando Sócrates. Na modernidade, fala-se de ignorância e de irresponsabilidade. Ouvimos pessoas dizer: "Não tenho culpa, não sabia."
Trindade Santos: Mas têm. A noção de culpa não se aplica na Grécia antiga como se aplica hoje. O homem grego tem noção das suas limitações e sabe que, quando as excede, paga por isso.
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Na Odisseia, quando Ulisses vai ao Hades, um mundo de sombras, encontra Aquiles que lhe diz que mais vale ser servo da gleba na Terra do que rei de todos os mortos no Hades. Ocorreu-me esta passagem a propósito do desejo de encontrar a luz, viver na luz. Nem que seja na condição de servo da gleba.
Trindade Santos: Um momento de luz. Conseguir encontrar uma resposta. Neste momento tenho de resolver um problema de um texto que estou a escrever, conseguir compreender o sentido da tese defendida por Sócrates no Fedro - de que o amor é uma divindade. Para um grego, dizer que o amor é uma divindade é como dizer hoje que o amor é a mais imediata expressão da nossa transcendência. Amando, transcendemo-nos.

Somos outros, saímos de nós.
Trindade Santos: A força que nos faz sair de nós só pode ser encarada como uma força divina. Nessa medida, saímos de nós quando amamos. E todos temos em nós, a todo o instante, a medida da nossa transcendência e a capacidade de a efectivar, através do amor. No amor físico, evidentemente, e em todas as outras espécies de amor que estão associadas ao amor físico. Dizer que o amor é divino é dizer que é a força que pode levar todos os homens, machos - não estamos a falar de mulheres - a transcenderem-se.
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Exemplifiquemos com dois mitos, dos mais populares na cultura ocidental, o de Sísifo e o de Orfeu e Eurídice. Como interpretá-los à luz dos nossos dias?
Trindade Santos:  No caso de Orfeu parece-me evidente: o amor nunca pode refugiar-se no passado. Daqui a algumas horas, quando a minha mulher chegar a casa, vou-lhe perguntar onde é que ela esteve, e ela vai-me dizer. Se eu conceder importância demais a essa pergunta e a essa resposta, estou a fechar o amor num círculo de factos passados. Estou a transformar a minha vida, e também a dela, num episódio inquisitorial. Eurídice não pode olhar para o mundo de onde foi afastada. A morte não se pode observar por cima do ombro - a morte agarra.
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Que leitura faz do mito de Sísifo?
Trindade Santos:  O mito de Sísifo não é independente do Sísifo, que é uma tragédia da autoria de Crítias, onde pela primeira vez é defendida a crença de que os deuses são uma invenção dos homens. Crítias é um dos 30 tiranos, um dos perseguidores de Sócrates, um dos que morrem lapidados no dia em que a revolução democrática corre com ele e com Cármides, e acaba por matá-los à pedrada. Depois há o famoso suplício de Sísifo, que empurrava uma pedra até ao alto de um monte, e depois a pedra caía de novo. Essa é uma forma de ver a vida. Nalgum momento a pedra escapa-nos, o terreno falta-nos debaixo dos pés. É uma das muitas possíveis formas de consciência da mortalidade e da limitação do ser humano. Não é isso a vida, empurrar uma pedra e vê-la cair? Como a sua própria vida, a perder-se.

Se a vida fosse a pedra e a viagem fosse única. Mas no mito de Sísifo acontece um movimento contínuo, ininterrupto. Ele não desiste de pôr novamente a pedra no cimo do monte, e ela acaba sempre por rolar.
Trindade Santos: E eu não desisto de conferir sentido à minha vida. E, pelo menos até agora, tenho a consciência de que sempre algo me escapa [riso]. Só que a minha atitude não é trágica. Quando se está a jogar um jogo, o jogo é a nossa forma de estarmos vivos enquanto o jogo dura. A única diferença entre uma concepção lúdica e uma concepção trágica da vida, neste ponto, é que o jogo acaba quando o jogador diz: "Acabou."
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Numa leitura muito redutora, e pela rama, as tragédias gregas surgem-nos pejadas de situações desmedidas, de uma enorme violência, de um carácter sangrento. Medeia é uma mulher que mata os seus filhos. Como compreendê-lo?
Trindade Santos: Medeia mata-os porque são filhos dela, ela vai ser posta fora daquela terra, vai ficar sem os filhos. O melhor é matá-los para não os deixar a qualquer homem. O homem não é portador de vida, e a mulher é, e se é portadora de vida tem o direito de matar.

Esse é o entendimento de Medeia.
Trindade Santos:  É.

Isso contraria aquela leitura, muito apressada, de que o faz enlouquecida de ciúme.
Trindade Santos: Qualquer leitura da história de Medeia é redutora. O que está em causa é a figura da mulher, e o questionamento que faz do seu lugar no mundo. Todas as mulheres são Medeia, podem é não matar os filhos [riso].

Significa que todas têm a capacidade de gerar vida, é nesse sentido que o diz?
Trindade Santos: Não só porque têm a capacidade de gerar vida, mas também porque os homens que geram a vida nelas não têm essa capacidade. É essa diferença que gera o conflito.
Medeia tinha uma terra e era alguém. De repente trocou tudo isso por um homem. Foi proscrita, teve de fugir. Entregou tudo àquele homem, que a abandona, que lhe tira o futuro, o presente. O passado, já lho tinha tirado. Resolve cortar com isso, e cortar com isso é cortar com o seu próprio corpo, com os filhos. Mata-os amando-os. (Isto aprendi: as mulheres são capazes de sacrificar o seu próprio amor, os homens, não, são muito mais egoístas.) As mulheres ainda hoje fazem isso. Não matar os filhos, mas ritualizarem esse acto nas inúmeras formas de separação. A forma como as mulheres se separam dos homens, e estou a falar das que estão conscientes do processo em que se encontram, é diferente do modo como os homens se separam. Eurípides percebeu isso, e pôs tudo isso naquela peça. Todos matamos os nossos filhos.











2 comentários:

Rolando Almeida disse...

Uma vez, por ocasião de um trabalho que fiz de análise de manuais de filosofia, recebi um mail que dizia qualquer coisa como isto: "desista, eu também já andei por aí e nada mudou". Vi que o nome no mail era do José TRindade dos Santos mas nem queria acreditar que ele tinha lido o meu trabalho. E era mesmo! Esse livro "filosofia no liceu" já o procurei em muitos lados e fazia-me alguma falta. Boa entrevista.

cristina simões disse...

Olá Rolando.
Boa História a sua e deve ficar orgulhoso por Trindade Santos dar valor ao seu blogue. É merecido.
É pena não encontrar o livro “filosofia no liceu". Sei que não lhe servirá de consolo o seguinte comentário de Trindade Santos, nesta entrevista: "Estou a escrever sobre Parménides desde 1981, já dei a volta a mim mesmo não sei quantas vezes. Estou muito contente com a última resposta a que cheguei, e muito aflito com o facto de as pessoas continuarem a ler coisas que escrevi e publiquei em 1997, e que hoje, para mim, estão completamente erradas.”
Compreendo que para quem gosta do saber, até “as coisas erradas” têm o seu interesse, nem que seja para perceber o método usado.