Lucian Freud Girl with a Kitten
Que força permite determinada mulher ou homem, suportar ser
tratado como coisa, por um parceiro perverso narcísico?
Não se trata de uma relação sado-masoquista como por vezes se
julga, ou de alguém que no lugar de vítima, provoca as agressões. Trata-se de
“um casal conduzido por um perverso narcísico que constitui uma associação
mortífera: a maledicência, os ataques subterrâneos são sistemáticos"
(Hirigoyen). Esse processo só é possível pela exagerada tolerância da parceira
(Hirigoyen), mas são as estratégias do perverso, que lhe
provocam culpabilidade, medo e dúvidas.
O perverso narcísico não sabe ser de outro modo, enquanto a
vítima tem possibilidade de escolher outro modo de vida.
É dessa tolerância que fala este texto de André Martins:
"O paradoxo é o de que a vítima se enreda e se torna vítima,
justamente por julgar-se forte, ao menos no fundo; por julgar-se capaz de
superar o sofrimento advindo da agressão injusta, e obter, ao final, a grande
recompensa de sua capacidade de resiliência, persistência e habilidade sobre o
outro: recompensa que é, precisamente, o amor do agressor que até então acena
com este amor seduzindo- a, mas na prática a desprezando mais do que
supostamente a ama. Ou ainda, a recompensa esperada pela vítima seria o
reconhecimento, por parte do agressor, do amor que ele, na verdade e no fundo,
sentiria pela vítima, mas não sabe, ou não consegue expressar, devido a suas
dificuldades afetivas e relacionais. O jogo do agressor consiste, assim, em dar
a entender que ama a vítima, mas em não declarar, não enunciar este amor, ou
fazê-lo cada vez menos ao longo da relação, e sempre de maneira ambígua,
ambivalente, fugidia. E em alternar entre seduzir a vítima, e, nos momentos de
crise, agredi-la fortemente com palavras que tocam seus pontos fracos e a
desestabilizam. As vítimas obedecem ao agressor “primeiro, para dar prazer a
seu parceiro, [...] pois ele tem um ar infeliz.
Depois, [...] por medo” (HIRIGOYEN, 2002, p. 110). Nem que seja
por medo de seu mau humor. “A submissão é aceita como necessidade de
reconhecimento e parece preferível ao abandono” – reconhecimento que não virá
nunca, ou se vier, virá sempre mitigado e parcial. “Como um perverso dá pouco e
exige muito, uma chantagem implícita ou, pelo menos, uma dúvida torna-se
possível: ‘Se eu me mostrar mais dócil, quem sabe ele poderá, enfim, me
apreciar ou me amar.’ Busca sem fim, pois o outro não estará jamais
satisfeito”. A vítima fica paralisada “pela recusa em ver que ela é rejeitada”
ou para evitar o constrangimento e o desgaste de um conflito – pois sabe que
qualquer contrariedade fará com que o agressor deflagre um conflito.
Assim, “o agressor mantém no outro uma tensão que equivale a um
estado de estresse permanente”. Se isso fica explícito na relação de casal,
algo análogo ocorre também em relações dentro de grupos sociais ou
profissionais.
Enquanto que o ego do agressor se caracteriza por um narcisismo
perverso, o ego da vítima é um ego paradoxalmente forte, não fraco, mas frágil
e carente: não dependente da aprovação do outro, mas desejoso desta aprovação.
É um ego desejoso de dar, de auxiliar, pois servir faz sentir-se dando ao outro
aquilo que ele desejaria receber. Daí – de sua força, no sentido de resistência
ao desamor – vem sua fragilidade que o faz colocar-se em relação com alguém que
não lida bem com o receber, pois considera que a mãe, e portanto, o outro, o
ambiente e o mundo, lhe deve algo, numa dívida sem fundo e sem fim. Um deseja
dar amor ao ponto de buscar aquele que demasiadamente não o teve, enquanto que
este cobra um amor que não existe, permanecendo insatisfeito.
Ao invés de reconhecer o amor do outro, sente necessidade em
desmerecê-lo.
Quanto mais um se dedica ao outro, mais o outro despreza esta
devoção. E trata de manter a relação manipulando-a através do assédio, aceito
pelo outro na intenção de este findar, de superá-lo, de vencer as dificuldades
da relação e se fazer amar."
André Martins, Uma violência silenciosa: considerações sobre a perversão narcísica Cadernos de Psicanálise, Rio de Janeiro, ano 31, nº22, 2009. Está online, aqui. ou aqui.
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