Faltam as palavras na secura dos dias. Na aspereza do sopro. Dos caminhos fazemos ermos e abismos. Habitamos o vazio, por onde pernoitamos ao sol.
É deste sentir que trata o livro – do sentimento de solidão e vazio, mas que a filosofia definiu como o triunfo do absurdo.
Conservo este livro desde os anos 70.
Contém um prefácio de Jean – Paul Sartre.
Jean – Paul Sartre no prefácio do livro “O Estrangeiro” de Albert Camus, questiona-se “como se deveria interpretar aquela personagem que, um dia depois da morte de sua mãe, tomava banhos, iniciava uma ligação irregular e ia rir-se diante de um filme cómico”, e matava um árabe “por causa do sol”. A resposta para Jean – Paul Sartre, está no absurdo que revela a relação do homem com o mundo. Prossegue: ” O absurdo fundamental manifesta antes de tudo um divórcio: o divórcio entre …a preocupação que é a sua própria essência e a inutilidade dos seus esforços.”
Por não conceber que uma obra filosófica não possa ser analisada numa dimensão psicológica, sobretudo porque retrata a vivência interior da personagem - Mersault - deixo-vos a minha interpretação, desta obra, com base em alguns investigadores ligados à saúde mental.
León Grinberg em Culpa e Depressão, escreve:
“Em O estrangeiro” de Camus, há evidentemente um total recalcamento do luto por parte da personagem central, cuja mãe morreu internada num asilo de idosos. A sua defesa principal é precisamente a despersonalização, que é a que dá origem ao título do romance. Tudo lhe é indiferente, até a morte da mãe. Mas na verdade existe um deslocamento do luto através do juízo do qual se vê submetido por ter morto um árabe. A sua culpa persecutória foi o que o levou a cometer esta morte como procura de castigo por outra morte, a da sua mãe. Também de forma substituta, o luto surge de forma manifesta noutra personagem que perdeu o seu cão.”
Freud indica duas vias possíveis para o aparelho mental lidar com a frustração: a fuga ou o pensamento. Nas palavras de Manuela Fleming (psicanalista) o pensamento – o pensar sobre as emoções e o acontecimento que as provocou - “permite ao aparelho mental suportar a frustração” e neutralizar a sua capacidade destruidora (ansiedade, depressão, culpa…).Quando isto não se faz, o individuo separa-se dos seus sentimentos e habitualmente sente vazio como se estivesse despojado dos mesmos. Pode vivênciar também, sensações de estranheza ou indiferença, em relação à realidade envolvente.
A via utilizada pela personagem de Mersault em “ O Estrangeiro” para lidar com as insatisfações da vida, foi a fuga, a mesma que utilizou para lidar com o luto. O luto pela morte da mãe. O luto pela morte de sonhos, ambições, partes do eu.
O luto em linguagem simples, está mal resolvido porque o luto é um processo com fases (4 fases para Worden) e não um estado. As tarefas que lhe estão inerentes, requerem esforço e tal como uma doença, pode não ficar totalmente curada, também o luto pode ficar incompleto em algumas pessoas. Ficou em Mersault.
Um exemplo do luto mal resolvido de Mersault: ”…compreendi que estava a chorar (o vizinho pelo desaparecimento do cão). Não sei porquê, pensei na minha mãe.” O luto é deslocado para o vizinho que perdeu o cão.
Para além do luto não resolvido, há utilizando a expressão de Coimbra de Matos (psicanalista), o isolamento, congelamento ou bloqueio do afecto positivo, que Jean – Paul Sartre traduz por indiferença. Como exemplo ilustrativo, a seguinte passagem.”Quando se riu voltei a sentir desejo por ela. Instantes depois, perguntou-me se eu a amava. Respondi-lhe que não queria dizer nada, mas que me parecia que não. ” Ou em: ”…compreendi que estava a chorar (o vizinho pelo desaparecimento do cão). Não sei porquê, pensei na minha mãe (morta).”
O bloqueio do afecto também é expresso na seguinte passagem: ”Mostrou um ar descontente, disse que eu respondia sempre à margem das questões…”, isto é, não se comprometia com o outro, na relação. Outra técnica, usada aqui, é o o recurso a abstracções, que é uma forma de filtrar os sentimentos (Arno Gruen – psicanalista).
Como mecanismo de defesa registo, entre outros, a arrogância e o desprezo. Por exemplo, na seguinte passagem ”Quando eu era estudante, alimentava muitas ambições desse género. Mas quando abandonei os estudos, compreendi muito depressa que essas coisas não tinham verdadeira importância”. E, novamente, aqui está presente o luto de partes da personagem, ambições, sonhos que não concretizou. Não se detecta amargura por isso, porque o personagem não permitiu o acesso ao seu sentimento.
A respeito do episódio referido por Jean – Paul Sartre “matava um árabe por causa do Sol”, o próprio personagem reconhece: “Era o mesmo sol do dia em que a minha mãe fora a enterrar” na praia “onde havia sido feliz”. É uma manifestação da culpa persecutória.
A culpa persecutória é o sentimento de um dano ocorrido na realidade ou também pode ter sido criado pela fantasia. M. Klein (psicanalista) considerava que a essência da culpa “reside na sensação de que a destruição causada ao objecto amado (mãe) tem como causa os impulsos agressivos do sujeito” (a personagem tinha colocado a mãe num asilo) - citação de León Grinberg. Ainda de acordo com este autor, as principais emoções que intervêm na culpa persecutória são: ressentimento, dor, desespero, o medo e a autocensura. Aparentemente, não parecem evidentes na personagem da obra, porque esta recorre a defesas para enfrentar a dor psíquica: a omnipotência (expressa por exemplo, pela arrogância e indiferença a tudo), a idealização e a negação expressa no desejo de muito publico no dia da sua execução, o que evidencia o sentimento de desesperança.