"São numerosos os exemplos
que mostram a participação transcendente do sentimento de culpa na produção
literária de todos os tempos.
Kafka é um dos autores que
mais desenvolveu o problema da culpa na sua obra, devido sobretudo aos seus
próprios conflitos pessoais. É bem conhecida a difícil relação que manteve com
o pai, que representou para ele uma imagem persecutória, pouco compreensiva e
com características superegóicas severas. Todas as personagens kafkianas se
encontram impregnadas de uma culpa persecutória muito intensa e de uma forte ambivalência
face a figuras autoritárias que aumentam essa culpa. A maldição do pai “destroçar-te-ei
como a um peixe” não é somente uma ameaça de castração, mas antes, assim como Rochefort*, tem para ele a força da praga de um
profeta e o sentido de uma maldição divina. O deus em que Kafka acreditava mais
parecia
ser um deus do terror. Um dos mecanismos utilizados por Kafka foi o da
dissociação; ele próprio assim o reconheceu, ao afirmar: “tenho um animal
curioso, herança do meu pai, metade cordeiro metade gato”. Kafka era simultaneamente
gregário e solitário, suave e selvagem, dócil e rebelde, místico e de inteligência
fria e calculista. A rejeição do pai, da mesma forma que o protagonista de A Metamorfose,
criava nele um sentimento de culpa sem limites e sem perdão.
Rochefort* sublinha que a
tentativa de Kafka de ser libertar da culpa era um esforço messiânico de o
conseguir pelo vazio no absurdo.
…
Em A Metamorfose, o problema
da culpa aparece predominantemente expresso através da linguagem corporal. Quando Gregório, o
protagonista do romance de Kafka acorda uma manhã e vê-se transformado numa barata, está já a
manifestar por meio dessa metamorfose toda uma serie de conflitos psicológicos introjetados
e expressos no seu corpo. Incorporou o desprezível inseto que condensa todos os
aspetos negativos das imagens que o rodeiam e da sua própria personagem. Ao mesmo
tempo, e recorrendo a um mecanismo regressivo, procurou desesperada e infrutuosamente
controlar os seus perseguidores no corpo através da escolha de uma identidade
negativa: a barata. Este recurso masochista, preço de uma culpa persecutória
não elaborada, levá-lo-á inevitavelmente a sucumbir perante as suas pulsões
destrutivas, encontrando finalmente a morte.”
León Grinberg Culpa e
Depressão Climepsi
*Rochefort, R. 1948 La Culpabilité Chez Kafka
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