domingo, 30 de dezembro de 2012

ENTREVISTA a Jaime Milheiro #1

Anabela Mota Ribeiro entrevista (muito bem, como sempre), Jaime Milheiro. Editada pela Revista 2 do Publico, com o título Tão bom foi o Natal”, em 23.12.12, aqui vos deixo, por agora, uma 1ª parte:

"O Natal é um regresso à infância, ao lugar onde fomos felizes? O Natal é uma suspensão do mundo, à margem do tempo, da agressividade, da sexualidade? O Natal é um suplício e a família é um lugar estranho? O Natal é um território fictício de bons sentimentos, onde se prega o amor e a justiça? Existe em nós o sentimento de que fomos - somos - o Menino Jesus? O psicanalista Jaime Milheiro ajuda-nos a encontrar algumas respostas.
Jaime Milheiro nasceu em 1935, é psiquiatra e psicanalista. O seu livro mais recente, A Invenção da Alma, tem edição de 2012. Mas não foi sobre ele que falámos há uma semana, no Porto. Breve descrição do ambiente da conversa: era um dia de dilúvio e as paredes do consultório são cor de terra. Há quadros de artistas plásticos portugueses, livros, dois maples onde nos sentámos e o divã onde se deitam os pacientes. Não parou de chover.
É um homem que diz coisas provocadoras, agudas, de modo afável. Mas plenamente consciente do impacto das suas palavras, de como elas interpelam o paciente, e, neste caso, o interlocutor. O tema proposto para a conversa era a quadra natalícia, as suas tensões e alegrias, o que resta da simbologia do Natal. Foi exclusivamente disso que falámos.
Sobre ele: tem um currículo sólido, habitualmente ocupou cargos de decisão. Foi presidente do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, da Associação Portuguesa de Saúde Mental, do Conselho Nacional de Saúde Mental, da Sociedade Portuguesa de Psicanálise. Fundou o Centro de Saúde Mental de Gaia, o Instituto de Psicanálise do Porto. Escreveu artigos científicos, artigos de opinião, vários livros.
Não parece ter a idade que tem. Fala frequentemente da criança que há em nós.
Ainda que remotamente, existe em nós a ideia de que fomos esperados? E já vamos dar ao Menino Jesus, o esperado.
J.M:Todos temos isso dentro de nós. Se não tivermos, estamos bastante mal - a nossa saúde mental [está bastante mal]. O que às vezes vemos na clínica é, justamente, a falha disso. Pessoas que acham que não foram esperadas. O saudável é pensar que se foi esperado. Isso implica uma relação real e fantasmática com as pessoas de quem provimos, a mãe, o pai.
A ideia de que somos e fomos queridos é fundamental para a construção psicológica de uma pessoa, de uma criança. E é fundamental para o seu desenvolvimento harmónico, entre si e as pessoas com quem se ligou, entre si e aquelas com quem se vai ligar.
A falha - porque não se foi querido e desejado - acontece pelo desencontro de expectativas, de percepções do que foi a relação afectiva entre pais e filhos?
J.M: Aparece como uma falha: "Eu tenho um desejo de, e esse desejo não foi satisfeito." Ou uma perda de qualquer coisa que se teve e que agora não se tem. Ou uma falha original, que é mais grave.
Qualquer coisa que nunca chegou a existir?
J.M: Sim. O bebé não tem palavras para dizer isto, mas tem um aparelho psicológico em formação que vai sentindo isto. Muita gente sobrevive, apesar de tudo, com um grau marcado dessa carência, desse desejo não cumprido.
Essa fractura tão antiga pode ser reconstruída?
J.M: Pensamos que sim. Tenho muitos anos de psicanálise e tenho visto muitas reconstruções, e reparações. Mas na totalidade nunca se recuperará. Totalidades, em psicologia, será bom nunca as fantasiar.
O desencontro de expectativas entre pais e filhos é inevitável? Imagino que seja comum um pai, uma mãe, ter a noção de que desejou a criança, a amou absolutamente e não haver por parte do filho a noção de que foi querido e cuidado com a mesma intensidade.
J.M: É muito comum. Nem é um desencontro, é uma leitura diferente de cada uma das partes. Uma parte acha sempre que deu o que podia, e a outra parte acha sempre que não recebeu quanto merecia. É banal, não me parece que deva ser considerada uma grande questão. Os aspectos narcísicos de cada um estão sempre insatisfeitos. A satisfação narcísica que a criança sente no seu crescimento, e que é visível na relação com as figuras significativas, nunca é absoluta.
Percebo que para um psicanalista seja um assunto banal. Contudo, a narrativa comum não banaliza este aspecto. Parece haver em muitos discursos uma zanga, muitas vezes consciente, outras vezes não consciente, de quem não ultrapassou este desnível inicial.
J.M: É uma questão de grau. Se esse desencontro tiver um grau muito elevado, deixa de ser banal para ser complicado para a saúde mental da pessoa. Mas num quantitativo relativo, pequeno, é comum a toda a gente. Até em Jesus Cristo.
Como assim?
J.M: É a minha fantasia. Jesus Cristo não estava inteiramente satisfeito com aquilo que o pai ou a mãe lhe davam, senão não era uma pessoa em boa construção [riso].
Neste período de Natal, até porque estamos imersos numa cultura judaico-cristã, estas fracturas emergem mais? Sentimo-nos mais frágeis, menos desejados?
J.M: Mais necessitados. Para além de todos os consumismos, de todas as máscaras que se colocam, e processos simbólicos que acontecem em todos os seres humanos, em todas as religiões e em todas as culturas, há Natal, com esse nome ou com outro, desde o homem das cavernas. Isso corresponde a um desejo. Um desejo de reunião com as pessoas significativas - as da infância - com quem trocamos afecto para crescer. Esse desejo de reunião, de estar com o outro, é o maior contributo de Jesus Cristo à humanidade. Cristo chama a atenção para o outro e para a necessidade que todo o ser humano tem do outro dentro de si. Ao mesmo tempo que é uma necessidade, esse desejo de reunião é também um pedido de amor.
É bizarro que seja um pedido. Esse amor, essa reciprocidade, não devia ser uma coisa natural e gratuita?
J.M: É natural, mas falha sempre. O Natal, que é a reunião familiar, com todas as vicissitudes marcadas que tem, é uma comemoração e uma concretização desse pedido. E momentaneamente exclui, naquele dia, o dia anterior e o dia posterior. Uma espécie de oásis. Exclui outras características do ser humano: a sexualidade e a agressividade.
Como é que, magicamente, a sexualidade e a agressividade, que são estruturantes no ser humano, ficam excluídas?
J. M:Vamos falar de símbolos concretos, o presépio e o Pai Natal. É impossível imaginar uma concretização ou outra com agressividade ou com sexualidade. Era impossível imaginar o Pai Natal de metralhadora à cinta. Era impossível imaginar um Pai Natal feito George Clooney ou Brad Pitt. Ou imaginar que a representação da Virgem Maria seria feita pela Scarlett Johansson ou pela Penélope Cruz.
Mas essa agressividade e sexualidade são motores da vida.
J.M: Não vivemos sem isso. E por isso temos dificuldades e atritos, complexidades, disputas.
Esse desejo de reunião de que fala encontra expressão naquela frase feita de que o Natal é a festa da família?
J.M: Sim, a festa da família compreende esse desejo de reunião num formato mais visível. Só estou a acrescentar leituras um pouco mais subterrâneas.
Olhemos para o presépio, para a imagem idílica de Maria em adoração, o menino na manjedoura, a ser cuidado, e José. Uma gruta, um ambiente protegido. A representação é quase sempre essa, não é a de um cenário inóspito. Essa imagem da família como lugar de protecção fica impregnada em nós?
J.M: Claro. Toda a gente sabe ter um pai e uma mãe. Toda a gente funciona psicologicamente sabendo isso e em função disso.
Se vivemos em função disso, nunca saímos da infância.
J.M: Vivemos em função disso e de outras coisas. Vivemos em função do crescimento que fizemos e da vida de adulto que tivemos, mas essa zona da infância, esse conhecimento e essa influência emocional na psicologia mais profunda, permanece. É bom que permaneça. Felizmente as pessoas continuam com uma criança dentro delas. Se é uma criança com um volume excessivo, já não será tão saudável assim. Quando vir um ser humano a funcionar como um computador, pense que ele esqueceu ou bloqueou, tem qualquer coisa que o leva a fazer uma recusa daquilo que foi a sua infância.
O que é ter essa criança viva dentro de nós num estado adulto?
J.M: É poder brincar com os filhos, com os netos, identificando-se com eles. Quando brinco com os meus netos, tenho a idade deles, é a criança que ainda funciona dentro de mim.
E isso é a curiosidade, é a inocência que reaparece?
J.M: Não, é a humanidade. É o sentimento de funcionamento do ser humano. Substituo as perguntas clássicas "quem somos", "de onde vimos", para onde vamos" por outra pergunta: "Como é que funciono?" É aí que incluo uma palavra que tenho usado bastante, "misteriosidade".
Para responder a essa pergunta não é preciso saber quem somos, de onde vimos?
J.M: Não, isso não tem respostas. É impossível ter resposta certa, com alguma validade interior, alguma capacidade de preenchimento interior.
Não é raro ouvir as pessoas dizer: "As festas, o Natal, só espero que passem depressa." Por que é que nesta quadra o que está recalcado emerge com maior violência e muitas tensões se acentuam?
J.M: Se a pessoa acha que o seu desejo de reunião está prejudicado pelas situações da realidade, o melhor seria dizer: "Desejo mas não quero."
O que é isso de desejar e não querer?
J.M: "Desejava ter uma reunião familiar, desejava ter um sentimento de ligação com as pessoas significativas da história da minha vida, mas as circunstâncias são de tal forma impeditivas disso que não quero." A pessoa deseja mas acha melhor não cumprir esse desejo em função das circunstâncias. Não nega o desejo. Na expressão que usou há pouco ["As festas, o Natal, só espero que passem depressa"] as pessoas negam o desejo. Dizer que não tem desejo de reunião é desumano, é negar o lado humano, é voltar ao computador. Quem não desejar isso, ou já deu em serial killer, ou já morreu.
Concomitantemente ao amor existe a disputa. Nem sempre as pessoas amam o pai, a mãe, os irmãos. Dizer: "Não quero passar o Natal com os meus pais" é negar esse desejo de reunião?
J.M: Quando as pessoas dizem isso, têm razões circunstanciais que o impedem, mas no fundo quereriam. Dizer "não quero" não quer de modo nenhum dizer que a pessoa intimamente não desejasse querer.
Quando, na altura do Natal, há pessoas que reagem mais violentamente, é porque desejam essa manifestação afectiva, têm uma carência dela, e como sabem que essa carência não pode ser suprida (porque do lado das figuras significativas só vem o oposto), há uma exaltação do lado negativo de cada um.
Para um psicanalista, para alguém que assiste da plateia, é mais fácil visualizar estas tensões. Para aquele que está no palco, em plena dinâmica familiar, é difícil tomar consciência disto que acaba de dizer; e verbalizá-lo.
J.M: São as vicissitudes de cada um, os formatos que cada um foi implementando na sua construção psicológica, as dificuldades e as capacidades que tem. Vou dizer uma barbaridade: a cultura, que é uma coisa que muito prezo, muitas vezes, nesta questão, só prejudica. Se perguntar a alguém analfabeto, do interior, ele sabe responder a isto com mais facilidade do que uma pessoa culta da cidade. Porque não têm uma espécie de poeira em cima. A poeira da cultura.
O que é que faz aqui a poeira da cultura? Interpõe máscaras, é isso?
J.M: Exactamente. Quando diz que há muita gente que não tem consciência da dinâmica dos afectos, que os levam a estar bem ou mal, ou a não querer uma reunião, se falar nisso a uma pessoa analfabeta, ela sabe responder muito melhor. É mais autêntica na expressão. É igual ao urbano, mas não aprendeu a camuflar-se tanto. O urbano, por necessidade, por cultura, habituou-se a camuflar. E fica nessa realidade procurando tapar aquilo que interiormente vive, ou com mais intensidade podia viver.
Há-de encontrar na clínica pessoas que têm uma capacidade discursiva e de elaboração sobre um determinado assunto, e que não conseguem depois penetrar nelas mesmas.
J.M: Exactamente. [Fazem uma] racionalização sobre as coisas, pensando que a racionalização sobre as coisas são as coisas. Não são as coisas.
Então, como chegar às coisas se não através das palavras?
J.M: Isso é uma enormíssima questão [riso]. No fundo, está a perguntar-me para que servem as palavras. A primeira utilização é transformar a coisa em palavra. É fazer com que a relação afectiva entre as pessoas se possa estabelecer através de sons. A palavra é um símbolo. Mas as palavras podem ser utensílios e não mais do que isso. Os poetas também têm isso.
Usam as palavras como utensílios?
J.M: Sim. Utensílios muitíssimo bons. Às vezes são verdadeiras paisagens interiores. São paisagens, não são uma emoção, não são um afecto, não são a pessoa. O Natal não é isto. É a ligação a outras pessoas, está muito para além das palavras. No Natal não há palavras, já reparou?
As palavras são "Feliz Natal", "Boas Festas".
J.M: São as bacoquices que dizemos todos. As palavras de Natal são coisas tão banais que toda a gente diz as mesmas. O Natal não são palavras, são interiores ligados num desejo de reunião.
Também se diz "o presente no sapatinho". Todos somos, à vez, Menino Jesus e Pai Natal. Somos ensinados, mesmo as crianças, a dar, a retribuir o presente. E somos Menino Jesus porque todos nascemos e temos um pai e uma mãe. Os presentes, que lugar ocupam? Não estou a pensar na febre consumista.
J.M: Todo o bebé que dê presentes à mãe a partir de um ano e meio, dois anos de idade, tem um gosto enorme em dar presentes à mãe.
Um presente pode ser um sorriso? Que presente é que uma criança de um ano e meio de idade dá à mãe?
J.M: Quando faz no pote, por exemplo, em vez de fazer nas calças ou na fralda, está a dar um presente à mãe.
Esta dimensão escatológica é um pouco inesperada...
J.M: Dar e receber coisas concretas, presentes. Já não é o afecto sentido e vivido, é um objecto. Não é a mãe dar. A mãe sempre deu e há-de dar até ao fim da humanidade; gosta disso porque o bebé é dela, o filho é dela. Presentear é presentear-se a si própria. Isso entende-se melhor. Mas o bebé dar à mãe..., repare nisso, é interessante.
É um desejo de retribuição, de ser merecedor da atenção da mãe?
J.M: Sim, é um desejo de troca, de partilha, agora através de objectos. Às vezes através de um objecto expelido pelo corpo, colocado no sítio onde a mãe queria que fosse, o pote, e não nas fraldas. Isto parece uma brincadeira, mas tem um valor simbólico.
Estamos sempre no plano do simbólico?
J.M: Sempre, não. Mas o plano simbólico tem muita importância. O que há de simbólico entre nós, neste momento, são as palavras. Você está aqui com o seu afecto e eu estou aqui com o meu afecto a falar consigo. O que há de simbólico na nossa troca são as palavras, são elas que nos aproximam.
A palavra "troca" adquiriu uma conotação pejorativa, ligada ao comércio. Como se fosse uma coisa interesseira. Porém, não é forçosamente assim, nem sempre foi assim. Mesmo no Natal, há trocas e trocas.
J.M: Há trocas verdadeiras e trocas falsas. Há trocas interesseiras, que são a maioria. A troca, inicialmente, implica afecto. É o processo em que a pessoa dá e recebe do outro um objecto. Como se fosse a própria pessoa que se dá. É o próprio que se dá ou que se recebe. O objecto é apenas um intermediário entre as pessoas. Isso é que é originário.
O que é originário é a criança que dá um desenho a uma pessoa de quem gosta? O desenho é uma forma intermediária de ela se dar?
J.M: Sim. Mas numa idade mais precoce que a idade do desenho, a troca acontece tanto no Porto como nos índios da Amazónia. É igual. Não há papel nem lápis, há aquilo que o bebé dá à mãe. O objecto é apenas um intermediário de uma relação em que cada um se entrega através do objecto.
 
CONTINUA

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