Anabela Mota Ribeiro
entrevista (muito bem, como sempre), Jaime Milheiro. Editada pela Revista 2 do Publico, com o título “Tão
bom foi o Natal”, em 23.12.12, aqui vos deixo, por agora, uma 1ª parte:
"O Natal é um
regresso à infância, ao lugar onde fomos felizes? O Natal é uma suspensão do
mundo, à margem do tempo, da agressividade, da sexualidade? O Natal é um
suplício e a família é um lugar estranho? O Natal é um território fictício de
bons sentimentos, onde se prega o amor e a justiça? Existe em nós o sentimento
de que fomos - somos - o Menino Jesus? O psicanalista Jaime Milheiro ajuda-nos
a encontrar algumas respostas.
Jaime Milheiro
nasceu em 1935, é psiquiatra e psicanalista. O seu livro mais recente, A
Invenção da Alma, tem edição de 2012. Mas não foi sobre ele que falámos há uma
semana, no Porto. Breve descrição do ambiente da conversa: era um dia de
dilúvio e as paredes do consultório são cor de terra. Há quadros de artistas
plásticos portugueses, livros, dois maples onde nos sentámos e o divã onde se
deitam os pacientes. Não parou de chover.
É um homem que diz
coisas provocadoras, agudas, de modo afável. Mas plenamente consciente do
impacto das suas palavras, de como elas interpelam o paciente, e, neste caso, o
interlocutor. O tema proposto para a conversa era a quadra natalícia, as suas
tensões e alegrias, o que resta da simbologia do Natal. Foi exclusivamente
disso que falámos.
Sobre ele: tem um
currículo sólido, habitualmente ocupou cargos de decisão. Foi presidente do
Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, da Associação Portuguesa de Saúde
Mental, do Conselho Nacional de Saúde Mental, da Sociedade Portuguesa de
Psicanálise. Fundou o Centro de Saúde Mental de Gaia, o Instituto de
Psicanálise do Porto. Escreveu artigos científicos, artigos de opinião, vários
livros.
Não parece ter a
idade que tem. Fala frequentemente da criança que há em nós.
Ainda que
remotamente, existe em nós a ideia de que fomos esperados? E já vamos dar ao
Menino Jesus, o esperado.
J.M:Todos temos isso
dentro de nós. Se não tivermos, estamos bastante mal - a nossa saúde mental
[está bastante mal]. O que às vezes vemos na clínica é, justamente, a falha
disso. Pessoas que acham que não foram esperadas. O saudável é pensar que se
foi esperado. Isso implica uma relação real e fantasmática com as pessoas de
quem provimos, a mãe, o pai.
A ideia de que somos
e fomos queridos é fundamental para a construção psicológica de uma pessoa, de
uma criança. E é fundamental para o seu desenvolvimento harmónico, entre si e
as pessoas com quem se ligou, entre si e aquelas com quem se vai ligar.
A falha - porque não
se foi querido e desejado - acontece pelo desencontro de expectativas, de
percepções do que foi a relação afectiva entre pais e filhos?
J.M: Aparece como uma
falha: "Eu tenho um desejo de, e esse desejo não foi satisfeito." Ou
uma perda de qualquer coisa que se teve e que agora não se tem. Ou uma falha
original, que é mais grave.
Qualquer coisa que
nunca chegou a existir?
J.M: Sim. O bebé não tem
palavras para dizer isto, mas tem um aparelho psicológico em formação que vai
sentindo isto. Muita gente sobrevive, apesar de tudo, com um grau marcado dessa
carência, desse desejo não cumprido.
Essa fractura tão
antiga pode ser reconstruída?
J.M: Pensamos que sim.
Tenho muitos anos de psicanálise e tenho visto muitas reconstruções, e
reparações. Mas na totalidade nunca se recuperará. Totalidades, em psicologia,
será bom nunca as fantasiar.
O desencontro de
expectativas entre pais e filhos é inevitável? Imagino que seja comum um pai,
uma mãe, ter a noção de que desejou a criança, a amou absolutamente e não haver
por parte do filho a noção de que foi querido e cuidado com a mesma
intensidade.
J.M: É muito comum. Nem é
um desencontro, é uma leitura diferente de cada uma das partes. Uma parte acha
sempre que deu o que podia, e a outra parte acha sempre que não recebeu quanto
merecia. É banal, não me parece que deva ser considerada uma grande questão. Os
aspectos narcísicos de cada um estão sempre insatisfeitos. A satisfação
narcísica que a criança sente no seu crescimento, e que é visível na relação
com as figuras significativas, nunca é absoluta.
Percebo que para um
psicanalista seja um assunto banal. Contudo, a narrativa comum não banaliza
este aspecto. Parece haver em muitos discursos uma zanga, muitas vezes
consciente, outras vezes não consciente, de quem não ultrapassou este desnível
inicial.
J.M: É uma questão de
grau. Se esse desencontro tiver um grau muito elevado, deixa de ser banal para
ser complicado para a saúde mental da pessoa. Mas num quantitativo relativo,
pequeno, é comum a toda a gente. Até em Jesus Cristo.
Como assim?
J.M: É a minha fantasia.
Jesus Cristo não estava inteiramente satisfeito com aquilo que o pai ou a mãe
lhe davam, senão não era uma pessoa em boa construção [riso].
Neste período de
Natal, até porque estamos imersos numa cultura judaico-cristã, estas fracturas
emergem mais? Sentimo-nos mais frágeis, menos desejados?
J.M: Mais necessitados.
Para além de todos os consumismos, de todas as máscaras que se colocam, e
processos simbólicos que acontecem em todos os seres humanos, em todas as
religiões e em todas as culturas, há Natal, com esse nome ou com outro, desde o
homem das cavernas. Isso corresponde a um desejo. Um desejo de reunião com as
pessoas significativas - as da infância - com quem trocamos afecto para
crescer. Esse desejo de reunião, de estar com o outro, é o maior contributo de
Jesus Cristo à humanidade. Cristo chama a atenção para o outro e para a
necessidade que todo o ser humano tem do outro dentro de si. Ao mesmo tempo que
é uma necessidade, esse desejo de reunião é também um pedido de amor.
É bizarro que seja
um pedido. Esse amor, essa reciprocidade, não devia ser uma coisa natural e
gratuita?
J.M: É natural, mas falha
sempre. O Natal, que é a reunião familiar, com todas as vicissitudes marcadas
que tem, é uma comemoração e uma concretização desse pedido. E momentaneamente
exclui, naquele dia, o dia anterior e o dia posterior. Uma espécie de oásis.
Exclui outras características do ser humano: a sexualidade e a agressividade.
Como é que,
magicamente, a sexualidade e a agressividade, que são estruturantes no ser
humano, ficam excluídas?
J. M:Vamos falar de
símbolos concretos, o presépio e o Pai Natal. É impossível imaginar uma
concretização ou outra com agressividade ou com sexualidade. Era impossível
imaginar o Pai Natal de metralhadora à cinta. Era impossível imaginar um Pai
Natal feito George Clooney ou Brad Pitt. Ou imaginar que a representação da
Virgem Maria seria feita pela Scarlett Johansson ou pela Penélope Cruz.
Mas essa
agressividade e sexualidade são motores da vida.
J.M: Não vivemos sem
isso. E por isso temos dificuldades e atritos, complexidades, disputas.
Esse desejo de
reunião de que fala encontra expressão naquela frase feita de que o Natal é a
festa da família?
J.M: Sim, a festa da
família compreende esse desejo de reunião num formato mais visível. Só estou a
acrescentar leituras um pouco mais subterrâneas.
Olhemos para o
presépio, para a imagem idílica de Maria em adoração, o menino na manjedoura, a
ser cuidado, e José. Uma gruta, um ambiente protegido. A representação é quase
sempre essa, não é a de um cenário inóspito. Essa imagem da família como lugar
de protecção fica impregnada em nós?
J.M: Claro. Toda a gente
sabe ter um pai e uma mãe. Toda a gente funciona psicologicamente sabendo isso
e em função disso.
Se vivemos em função
disso, nunca saímos da infância.
J.M: Vivemos em função
disso e de outras coisas. Vivemos em função do crescimento que fizemos e da
vida de adulto que tivemos, mas essa zona da infância, esse conhecimento e essa
influência emocional na psicologia mais profunda, permanece. É bom que
permaneça. Felizmente as pessoas continuam com uma criança dentro delas. Se é
uma criança com um volume excessivo, já não será tão saudável assim. Quando vir
um ser humano a funcionar como um computador, pense que ele esqueceu ou
bloqueou, tem qualquer coisa que o leva a fazer uma recusa daquilo que foi a
sua infância.
O que é ter essa
criança viva dentro de nós num estado adulto?
J.M: É poder brincar com
os filhos, com os netos, identificando-se com eles. Quando brinco com os meus
netos, tenho a idade deles, é a criança que ainda funciona dentro de mim.
E isso é a
curiosidade, é a inocência que reaparece?
J.M: Não, é a humanidade.
É o sentimento de funcionamento do ser humano. Substituo as perguntas clássicas
"quem somos", "de onde vimos", para onde vamos" por
outra pergunta: "Como é que funciono?" É aí que incluo uma palavra
que tenho usado bastante, "misteriosidade".
Para responder a
essa pergunta não é preciso saber quem somos, de onde vimos?
J.M: Não, isso não tem
respostas. É impossível ter resposta certa, com alguma validade interior,
alguma capacidade de preenchimento interior.
Não é raro ouvir as
pessoas dizer: "As festas, o Natal, só espero que passem depressa."
Por que é que nesta quadra o que está recalcado emerge com maior violência e
muitas tensões se acentuam?
J.M: Se a pessoa acha que
o seu desejo de reunião está prejudicado pelas situações da realidade, o melhor
seria dizer: "Desejo mas não quero."
O que é isso de
desejar e não querer?
J.M: "Desejava ter
uma reunião familiar, desejava ter um sentimento de ligação com as pessoas
significativas da história da minha vida, mas as circunstâncias são de tal
forma impeditivas disso que não quero." A pessoa deseja mas acha melhor
não cumprir esse desejo em função das circunstâncias. Não nega o desejo. Na
expressão que usou há pouco ["As festas, o Natal, só espero que passem
depressa"] as pessoas negam o desejo. Dizer que não tem desejo de reunião
é desumano, é negar o lado humano, é voltar ao computador. Quem não desejar
isso, ou já deu em serial killer, ou já morreu.
Concomitantemente ao
amor existe a disputa. Nem sempre as pessoas amam o pai, a mãe, os irmãos.
Dizer: "Não quero passar o Natal com os meus pais" é negar esse
desejo de reunião?
J.M: Quando as pessoas
dizem isso, têm razões circunstanciais que o impedem, mas no fundo quereriam.
Dizer "não quero" não quer de modo nenhum dizer que a pessoa
intimamente não desejasse querer.
Quando, na altura do
Natal, há pessoas que reagem mais violentamente, é porque desejam essa
manifestação afectiva, têm uma carência dela, e como sabem que essa carência
não pode ser suprida (porque do lado das figuras significativas só vem o
oposto), há uma exaltação do lado negativo de cada um.
Para um
psicanalista, para alguém que assiste da plateia, é mais fácil visualizar estas
tensões. Para aquele que está no palco, em plena dinâmica familiar, é difícil
tomar consciência disto que acaba de dizer; e verbalizá-lo.
J.M: São as vicissitudes
de cada um, os formatos que cada um foi implementando na sua construção
psicológica, as dificuldades e as capacidades que tem. Vou dizer uma
barbaridade: a cultura, que é uma coisa que muito prezo, muitas vezes, nesta
questão, só prejudica. Se perguntar a alguém analfabeto, do interior, ele sabe
responder a isto com mais facilidade do que uma pessoa culta da cidade. Porque
não têm uma espécie de poeira em cima. A poeira da cultura.
O que é que faz aqui
a poeira da cultura? Interpõe máscaras, é isso?
J.M: Exactamente. Quando
diz que há muita gente que não tem consciência da dinâmica dos afectos, que os
levam a estar bem ou mal, ou a não querer uma reunião, se falar nisso a uma
pessoa analfabeta, ela sabe responder muito melhor. É mais autêntica na
expressão. É igual ao urbano, mas não aprendeu a camuflar-se tanto. O urbano,
por necessidade, por cultura, habituou-se a camuflar. E fica nessa realidade
procurando tapar aquilo que interiormente vive, ou com mais intensidade podia
viver.
Há-de encontrar na
clínica pessoas que têm uma capacidade discursiva e de elaboração sobre um
determinado assunto, e que não conseguem depois penetrar nelas mesmas.
J.M: Exactamente. [Fazem
uma] racionalização sobre as coisas, pensando que a racionalização sobre as
coisas são as coisas. Não são as coisas.
Então, como chegar
às coisas se não através das palavras?
J.M: Isso é uma
enormíssima questão [riso]. No fundo, está a perguntar-me para que servem as
palavras. A primeira utilização é transformar a coisa em palavra. É fazer com
que a relação afectiva entre as pessoas se possa estabelecer através de sons. A
palavra é um símbolo. Mas as palavras podem ser utensílios e não mais do que
isso. Os poetas também têm isso.
Usam as palavras
como utensílios?
J.M: Sim. Utensílios
muitíssimo bons. Às vezes são verdadeiras paisagens interiores. São paisagens,
não são uma emoção, não são um afecto, não são a pessoa. O Natal não é isto. É
a ligação a outras pessoas, está muito para além das palavras. No Natal não há
palavras, já reparou?
As palavras são
"Feliz Natal", "Boas Festas".
J.M: São as bacoquices
que dizemos todos. As palavras de Natal são coisas tão banais que toda a gente
diz as mesmas. O Natal não são palavras, são interiores ligados num desejo de
reunião.
Também se diz "o presente no
sapatinho". Todos somos, à vez, Menino Jesus e Pai Natal. Somos ensinados,
mesmo as crianças, a dar, a retribuir o presente. E somos Menino Jesus porque
todos nascemos e temos um pai e uma mãe. Os presentes, que lugar ocupam? Não
estou a pensar na febre consumista.
J.M: Todo o bebé que dê
presentes à mãe a partir de um ano e meio, dois anos de idade, tem um gosto
enorme em dar presentes à mãe.
Um presente pode ser
um sorriso? Que presente é que uma criança de um ano e meio de idade dá à mãe?
J.M: Quando faz no pote,
por exemplo, em vez de fazer nas calças ou na fralda, está a dar um presente à
mãe.
Esta dimensão
escatológica é um pouco inesperada...
J.M: Dar e receber coisas
concretas, presentes. Já não é o afecto sentido e vivido, é um objecto. Não é a
mãe dar. A mãe sempre deu e há-de dar até ao fim da humanidade; gosta disso
porque o bebé é dela, o filho é dela. Presentear é presentear-se a si própria.
Isso entende-se melhor. Mas o bebé dar à mãe..., repare nisso, é interessante.
É um desejo de
retribuição, de ser merecedor da atenção da mãe?
J.M: Sim, é um desejo de
troca, de partilha, agora através de objectos. Às vezes através de um objecto
expelido pelo corpo, colocado no sítio onde a mãe queria que fosse, o pote, e
não nas fraldas. Isto parece uma brincadeira, mas tem um valor simbólico.
Estamos sempre no
plano do simbólico?
J.M: Sempre, não. Mas o
plano simbólico tem muita importância. O que há de simbólico entre nós, neste
momento, são as palavras. Você está aqui com o seu afecto e eu estou aqui com o
meu afecto a falar consigo. O que há de simbólico na nossa troca são as
palavras, são elas que nos aproximam.
A palavra
"troca" adquiriu uma conotação pejorativa, ligada ao comércio. Como
se fosse uma coisa interesseira. Porém, não é forçosamente assim, nem sempre
foi assim. Mesmo no Natal, há trocas e trocas.
J.M: Há trocas
verdadeiras e trocas falsas. Há trocas interesseiras, que são a maioria. A
troca, inicialmente, implica afecto. É o processo em que a pessoa dá e recebe
do outro um objecto. Como se fosse a própria pessoa que se dá. É o próprio que
se dá ou que se recebe. O objecto é apenas um intermediário entre as pessoas.
Isso é que é originário.
O que é originário é
a criança que dá um desenho a uma pessoa de quem gosta? O desenho é uma forma
intermediária de ela se dar?
J.M: Sim. Mas numa idade
mais precoce que a idade do desenho, a troca acontece tanto no Porto como nos
índios da Amazónia. É igual. Não há papel nem lápis, há aquilo que o bebé dá à
mãe. O objecto é apenas um intermediário de uma relação em que cada um se
entrega através do objecto.
CONTINUA
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