quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

ENTREVISTA a Jaime Milheiro #2


Anabela Mota Ribeiro entrevista Jaime Milheiro (psiquiatra e psicanalista). Editada pela Revista 2 do Publico, com o título “Tão bom foi o Natal”, em 23.12.12, aqui vos deixo, a 2ª parte e última .

"...
Outra das expressões constantes do Natal e da troca de presentes: "É uma coisinha sem importância." Como se houvesse uma desvalorização de quem se é ou do que se está a dar.
J. M: Ou do que se pensa que o outro espera que se lhe dê. Quando se diz isso está a pensar-se na quantidade que o outro esperaria. Está a pensar-se muito mais no desejo do outro do que no desejo do próprio. Imaginemos uma pessoa que oferece uma coisinha de nada a alguém...

Uma pedra, por exemplo, que é uma coisa que se apanha na rua, aparentemente sem valor.
J.M: Pode, para a pessoa que oferece isso, representar algo de muito significativo, muito verdadeiro, de grande intensidade afectiva. A forma como o outro o vai receber dependerá do outro, não dependerá de quem oferece. E, quando a pessoa diz que é uma coisinha pequena, está preocupada com o que o outro pensará sobre o volume, está a pensar no apreço que dará àquilo que está a oferecer. A prendinha pode representar uma preocupação quanto ao outro; a pessoa pode sentir-se muito bem a dar uma prendinha de nada.

Quando não se sente bem por dar "uma prendinha de nada", entra aí, também, uma expectativa social e uma ideia de fracasso financeiro? Ou seja, se se tem sucesso pode-se comprar o que se quiser. Se se dá uma coisa sem valor material, o outro vai ler isso como um falhanço, ou até como desinteresse.
J.M: Ou como uma desvalorização da pessoa.

Um parêntesis para sublinhar isto: mais do que uma vez falou do bebé e da relação com a mãe. Alguns leitores menos atreitos ao discurso psicanalítico perguntar-se-ão o que é que o bebé tem a ver com isto, ou se ainda estamos na idade do bebé.
J.M:  Há na espécie humana uma zona de afectos, uma zona cultural e uma zona folclórica. Eu estou a falar da zona de afectos. Você estava a falar da zona cultural. A zona folclórica também existe, não vamos negar, vivemos muito nela.

E todos temos as três?
J. M: Sim. Diria que a prevalência de cada uma depende de cada um.

E agora retomo o tópico do falhanço. No Natal fica mais patente a vida para além das máscaras. Se a pessoa está com ou sem trabalho, se está separada ou não, se tem um filho com problemas ou se tem um filho exemplar, se é ou não dedicada aos pais. Da gestão destas questões resulta uma agressividade mais à flor da pele. Isto é constante?
J:M:  É. Diria que faz parte. É uma parcela de um conjunto que acontece na reunião das pessoas. Penso que a sua pergunta, subliminarmente, vai sempre dar à questão da saúde mental. Até que ponto as questões exteriores, as questões sociológicas (onde as questões económicas entram, e muito, hoje), entram na saúde mental de uma pessoa? É uma questão importantíssima.

Entram inevitavelmente?
J.M: Entram. Mas às vezes confunde-se a parte pelo todo. É só uma parte da saúde mental das pessoas, não é o todo. As questões sociológicas participam na saúde mental da pessoa, mas não criam a saúde mental da pessoa. Conjugam-se. Às vezes com parcelas grandes, outras com parcelas pequenas.

Quando as pessoas estão muito descompensadas, ou em ruptura nesse plano socioeconómico, é normal que essa parcela seja dominante.
J.M:  É normal que seja muito importante. Mesmo aí (vou dizer uma frase politicamente incorrecta) há pessoas que se aguentam melhor do que outras, porque têm uma saúde mental (organizada psicologicamente em si) mais sólida do que outros.

Está a dizer que a auto-estima está centrada em si e não naquilo que a pessoa tem ou conseguiu?
J.M: É isso. A organização psicológica da pessoa A tem um peso e uma consistência, uma coesão interior mais sólida, com maior resiliência, do que o indivíduo B ou C. Essa parcela é muito importante na reactividade de cada um às circunstâncias externas, sejam elas boas ou más. E se elas são más dão um enorme prejuízo na saúde da pessoa. Mas não são tudo.

Muitas pessoas perguntam-se, quando estão em período de dificuldade: "O que é que eu valho?" Isto tem respostas muito diferentes consoante a pessoa se sente útil e amada.
J.M: Há pessoas que respondem a essa pergunta quando há formatos sociológicos bons, ou quando há formatos sociológicos maus, com quantitativos diferentes. Mas a resposta está sempre configurada por aquilo que a pessoa sente relativamente a isso de forma prévia. Se a pessoa acha que não presta para coisa nenhuma mesmo que tenha descoberto o caminho marítimo para a Índia, estará sempre mal consigo própria.

Há pessoas que descobriram o caminho marítimo para a Índia e que estão mal consigo próprias? Conhece muitas pessoas que fazem coisas extraordinárias socialmente, que têm todos os sinais do sucesso e que acham que não valem nada?
J.M: Essa qualificação externa é importante, mas é possível imaginar uma pessoa que descobriu o caminho marítimo para a Índia e que acha que não presta.

Explique melhor.
J.M: Porque a pessoa traz essa enorme dúvida [acerca] da sua qualificação interior, desde a sua relação infantil, desde a formatação que lhe deu isso na adolescência. Há pessoas que estão eternamente duvidosas de si próprias, mesmo que tenham um grande sucesso exterior. Também há o contrário.

Pessoas que nunca fizeram nada e que têm uma grande ideia de si próprias?
J.M: Sim, isso até é mais fácil de observar.

E aparentemente será mais fácil de compreender. É mais difícil compreender, ou identificar, alguém que tenha um grande sucesso social, e que tenha essa falha, que não se sinta merecedora desse reconhecimento.
J.M. Merecedora, provavelmente acha. Mas acha que esse mérito que lhe dão não compensa o sentimento que traz consigo. Ainda há dias li uma carta do Eça de Queiroz, do fim de vida, onde isso é claro como água. Já tinha escrito toda a sua obra, fabulosa, que admiramos, e dizia: "Tenho sempre uma enorme dúvida sobre se isto presta para alguma coisa." O grande Eça de Queiroz.

Até ao fim temos uma parte de criança órfã da atenção do pai ou da mãe, da confirmação do pai ou da mãe?
J.M: A sua palavra é muito boa. É a necessidade de confirmação daquilo que somos. Quando há pouco falava do presente que o bebé de dois anos dá à mãe, há o gosto da troca, como se fosse o próprio que se dá à mãe, mas espera que o outro lado confirme.

Espera um: "Fizeste muito bem, lindo menino."
J.M: Essas coisas são mais o que se transmite sem palavras do que propriamente as palavras. As crianças também aprendem cedo que as palavras são usadas apenas para camuflar, para dizer o contrário daquilo que a pessoa está a sentir. (Estou a dizer coisas provocatórias [riso].) A criança começa a sentir essa espécie de ilusão ou de mentira pelos três, quatro anos de idade. Começa a intuir que aquilo que está a ouvir não corresponde àquilo que está a sentir, e que da outra parte estão a criar-lhe uma ilusão, uma mentira.

Sabemos que as famílias são um lugar estranho. A história bíblica está marcada pelo grande mito de Abel e Caim. Gostava que me falasse das relações amorosas e tantas vezes raivosas que os irmãos têm entre si e que depois confluem, com as outras histórias, à volta da mesa do Natal.
J.M: Quando diz que a família é um lugar estranho, é uma expressão curiosa. É um lugar estranho mas atractivo. E a própria estranheza pode ser atractiva. Quando essa estranheza deixa de ser atractiva para ser rejeitante, as coisas complicam-se. A competição entre os irmãos é tão natural existir que sem isso não haveria crescimento saudável entre irmãos. Os irmãos, ou competem entre si ou não crescem.

A competição é um: "Quero ser melhor do que ele, quero ter mais atenção do que ele, quero ter mais brinquedos do que ele"?
J.M: Não, não. É: "Eu sou capaz de fazer isto e tu não és, sou capaz de a jogar à bola meter um golo e tu não és."

"Eu sou mais bonito do que tu, sou mais inteligente do que tu, a mãe gosta mais de mim, o pai gosta mais de ti"?
J.M: Essa é outra parte. A competição normal, boa, que faz crescer é desta ordem: "Sei a tabuada melhor do que tu, eu já sei ler e tu ainda não." As coisas complicam-se quando nessa competição entra outro elemento: "Mas eu sou reconhecido como vencedor ou como perdedor perante a mãe ou perante o pai, ao contrário de ti", e como é que isso se joga. A competição pode evoluir no sentido de uma rivalidade, que tem a ver com esses elementos participativos, o pai, a mãe, ou quem tenha a figura significativa. E pode evoluir para zonas onde a competição se pode tornar mortífera. Felizmente, não é tanto assim na imensa maioria das famílias. Os irmãos podem ter zonas onde se detestam, mas porque foram competidores saudáveis têm essa zona da competição saudável dentro de si, ainda, para se considerarem irmãos apesar das coisas que acontecem.

Detestarem-se e amarem-se, terem zonas onde se amam e se detestam é o mais comum?
J.M: É. Se olhar bem, até sociologicamente, por que é que as famílias existem desde sempre e se mantêm?

E é verdade é que, quando se sai, normalmente, faz-se uma outra família.
J.M: E leva-se a primeira no pensamento latente. Leva-se, inevitavelmente.

Para se fazer diferente, para se fazer igual?
J.M: Para se fazer melhor, como termo de comparação com tudo. Mas leva-se esse fantasma. E por que é que isso se mantém desde há milhares de anos? Porque as ligações afectivas da criança se desenvolvem necessariamente com as figuras significativas que tiveram, e a elas permanecem ligadas a vida inteira. Toda a gente teve um pai e uma mãe a quem permanece ligado a vida inteira, mesmo que eles tenham morrido em pequenos.

 Ligado em que sentido?
J.M: Ligado no sentido interior, inconsciente (no sentido de "objecto interno", para usar as palavras da psicanálise). Deixa de ser um objecto externo, visível, para passar a ser um objecto interno, que só existe sob a forma de representação mental ou dentro da cabeça de cada um. Não se vive sem isso. Só a existência disso nos pode conceder esta coisa fundamental do funcionamento do ser humano: "Sou uma pessoa, com sentimento de pessoa, e sou diferente dos sete biliões que andam aqui a intoxicar este planeta." Todos são diferentes, todos sentem a sua individualidade.

Todos? A imagem que temos da representação do Natal é a de uma criança única - Jesus. Não é a de uma família com várias crianças. A dificuldade não é sentirmos a criança única dentro de nós, sentirmos essa unicidade?
J.M: Essa unicidade acontece seja única, seja uma criança no meio de 20. Essa unicidade é a essência do conhecimento que tem de si própria. "Eu chamo-me assim, existo aqui."

Estava a pensar naqueles espaços onde julgamos que não existimos. Ficamos inseridos numa mancha anónima, entre avós, tios, pais, primos, cunhados, sobrinhos, sem relevância no grupo. Isto é uma dificuldade?
J.M: É. Pode acontecer a qualquer pessoa ter o seu sentimento de existência, a sua identidade e supor que naquele desejo de reunião o seu papel é menor. A mim dá-me sempre vontade de perguntar: "Então, e o que é que faz para que ele deixe de ser menor? Faz alguma coisa por isso? Cuida disso?" Esse é que será o movimento saudável. Há pessoas que nunca repararam que cristalizaram na lamúria. Intimamente, é como se não quisessem sair dali. O queixar-se passou a ser mais importante.

É uma forma autocondescendente, é uma forma defensiva de lidar com aquilo. Desresponsabilizante.
J.M:De se confrontar responsavelmente. O crescimento das pessoas e das mentalidades passa muitíssimo por aí, pela responsabilização confrontativa no crescimento. A responsabilização, que hoje tendencialmente se procura evitar, é fundamental na organização de uma saúde mental resiliente. A grande questão é como é que isso se faz. É até a grande questão de um país, um país como este, como Portugal, num momento como este. Não nos responsabilizamos como pessoas, depois como cidadãos, depois como colectivo.

Alguma vez pensou como é que seria a psicanálise de uma figura como Jesus?
J.M: Sabemos muito pouco de Jesus. Jesus é uma pessoa que me interessa muito. O que fizeram dele depois é outra conversa em que já não me reconheço, e já não contribuo para esse peditório. O que a Bíblia nos conta foi filtrado em múltiplos aspectos pelo Concílio de Niceia, no século IV. O que sabemos são os últimos três anos de vida, não sabemos nada sobre o que foi a sua verdadeira história como pessoa.

E essa está sediada na infância.
J.M: Na infância, na adolescência. O que é lhe aconteceu, como era.

Ao Natal corresponde uma ideia de nascimento, de vida nova, de uma vida que está por fazer. Esse é ainda um sentimento muito identificado quando se pensa no Natal?
J.M: O Natal deixou de ser uma zona afectiva da espécie para ser uma zona cultural e folclórica das organizações sociais. Se calhar as pessoas nem sabem o que é que quer dizer a palavra Natal. Sabem apenas o que são as festas. Perdeu-se muito esse sentido de uma vida nova, de um ser humano que nasce e que vai trazer alguma coisa.

Esse sentimento de vida nova existe no Ano Novo, ou mesmo quando uma pessoa faz anos?
J.M: Não existe nunca. Gostaríamos que existisse.

Apesar das promessas e determinações de Ano Novo, por exemplo?
J.M: É o lado mágico das pessoas: "Agora é que vou mudar." Ninguém muda com data marcada. Se quiser mudar, muda em qualquer dia do ano, não é preciso estar à espera das badaladas e das uvas-passas.

As datas simbólicas ajudam à decisão.
J.M: Ajudam a localizar-se, mas não são nenhum factor mágico que vai dar um contributo especialíssimo e fazer com que a mudança aconteça. Quando assim for, estamos num circo.

Sei que os psicanalistas não falam na primeira pessoa, não revelam a sua história. Mas pode contar-me sobre a memória de um Natal que seja preciosa e de um presente que tenha um significado importante para si?
J.M: Nunca tive um Natal especial nem um presente especial. Tenho tido sorte na vida.

O que é que está a dizer com esse sorriso?
J.M: Que, como sou uma pessoa com sorte na vida, sempre tive natais e presentes especiais. Mas trabalhei bastante para ter sorte.

Essa resposta é um pouco frouxa.
J.M: Não me parece. Pense nisso [riso]. Faz mais sentido do que pode parecer.

FIM

Sem comentários: