Artigo de Anselmo Borges* ao Diário de Notícias de 8.6.13, com o título O diabo, possessões demoníacas e
exorcismos:
"O Papa
Francisco terá alegadamente realizado um exorcismo num mexicano. O porta-voz do
Vaticano apressou-se a desmentir. Mas o célebre exorcista Gabriele Amorth, a
caminho dos 90 anos e que diz já ter feito mais de 70 mil exorcismos, não
duvida de que "o Papa fez mesmo um exorcismo". Por mim, confesso que
estou plenamente convencido de que Francisco não o fez: apenas tentou ajudar
aquela pessoa doente, impondo-lhe as mãos e rezando.
Diabo é,
etimologicamente, o contrário de símbolo: enquanto diabállo, em grego,
significa desunir, enganar, symboléo quer dizer encontrar-se com, reunir. O
simbólico une; o diabólico desune.
O diabo é
uma figura com muitos nomes, embora o seu sentido não seja exactamente
idêntico: satã, demónio, satanás, belzebu, lúcifer, mafarrico, maligno... Aqui,
serão usados indistintamente.
Seja como
for, o decisivo é que o diabo aparece no contexto do sofrimento, da maldade,
enfim, do mal. Como se explica tanto mal e sofrimento no mundo? Uma vez que
Deus não pode ser a causa do mal, pois é infinitamente bom, supõe-se que o
diabo poderia ser uma boa explicação. Ele tentou e tenta o ser humano, que cai
na tentação e provoca o mal. Mas já o filósofo Kant colocou na boca de um
catequizando iroquês esta pergunta: Por que é que Deus não acabou com o diabo?
E sobretudo: quem é que tentou os anjos, para que, de bons, se transformassem
em anjos caídos e maus, demónios?
Para
explicar o mal, contrapor o diabo a Deus, como se fosse uma espécie de
anti-Deus, no quadro de um dualismo maniqueu, não passa de uma explicação
aparente e, sobretudo, é uma contradição.
Se é certo
que Jesus, nos Evangelhos, aparece expulsando demónios, isso deve ser
compreendido no contexto das crenças da altura. Hoje, sabemos que se tratava de
doenças do foro psiquiátrico ou de pessoas com ataques epilépticos ou sofrendo
de histeria. De qualquer forma, Jesus anunciou Deus e não satanás, e,
felizmente, o diabo não faz parte do Credo cristão. O núcleo da mensagem de
Jesus foi o Reino de Deus, e o Reino de Deus consiste na salvação total e plena
do ser humano. Neste contexto, o diabo pode aparecer apenas como um símbolo
personificado de todo o mal que ainda aflige o homem, mas a que Deus há-de pôr
termo, segundo a promessa de Jesus. O diabo é a expressão personificada do que
não é o Reino de Deus. Precisamente para realçar mais e melhor o que constitui
o centro da mensagem de Jesus enquanto notícia boa e felicitante: o futuro do
Reino de Deus.
O diabo não
pode, pois, ser apresentado como uma espécie de concorrente de Deus. E não tem
sentido continuar a pensar e a pregar que ele se mete nas pessoas, para tomar
conta delas através das possessões diabólicas. Não há possessos demoníacos.
Apenas há doenças e doentes de muitas espécies e com múltiplas origens e com
imenso sofrimento, a que é preciso pôr fim, na medida do possível e, pelo
menos, aliviar. Os rituais de exorcismos não têm justificação.
Se Jesus não
pregou satanás, mas Deus, então a fé do cristão dirige-se a Deus e não ao
diabo, o que inclui na prática a urgência de expulsar da vida pessoal e pública
tudo o que é demoníaco e diabólico.
Já em 1969,
Herbert Haag, um dos maiores exegetas do século XX, que conheci bem, se
despedia da crença na existência pessoal do diabo, na obra Abschied vom Teufel
(Adeus ao diabo). H. Bietenhard também escreveu: "A pregação cristã não
deve especular sobre a origem e a essência ou o ser de Satanás - a Bíblia
também não o faz: as pregações sobre o diabo e sobre o inferno, quando não
fomentam a necessidade de emoções de pessoas pseudopiedosas e a excitação dos
seus nervos, só servem para difundir a insegurança, a angústia e o medo. Essas
pregações, em vez de libertar, colocam fardos aos ombros das pessoas."
Como diz o
teólogo José M. Castillo, a Igreja, em vez da preocupação com o número de
exorcistas para os demónios inexistentes, deve preocupar-se com os outros
demónios, os que na realidade existem, que andam por aí à solta e são
responsáveis por imensos sofrimentos de milhões de pessoas."
*Currículo de Anselmo Borges
Padre da Sociedade Missionária Portuguesa. Estudou Teologia (Universidade Gregoriana, Roma), Ciências Sociais (École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris) e Filosofia (Universidade de Coimbra). Lecionou Filosofia e Teologia na Universidade Católica Portuguesa e no Seminário Maior de Maputo, Moçambique. É docente de Filosofia (Antropologia Filosófica, Filosofia da Religião, Ética, Mulheres e Religiões) na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Algumas das suas publicações: Marx ou Cristo?; Janela do (In)visível; Religião: Opressão ou Libertação?; Morte e Esperança; Corpo e Transcendência; Deus no século XXI e o futuro do cristianismo (coord.); Janela do (In)finito; Deus e o sentido da existência; Religião e Diálogo Inter-Religioso (esta última editada em 2010 pela Imprensa da Universidade de Coimbra). É colunista do “Diário de Notícias” sobre temas de religião.
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