terça-feira, 20 de julho de 2010

A ferida

"Assim que desagradavam à menina de La Mole, esta sabia castigar com uma zombaria tão comedida, tão bem escolhida, tão adequada na aparência, proferida tão a propósito, que a ferida aumentava a cada instante, quanto mais reflectiam sobre ela. Tornava-se pouco a pouco atroz para o amor – próprio ofendido. Visto que não dava valor algum a muitas coisas que não eram objectos de sérios desejos para o resto da família, parecia sempre de sangue-frio aos olhos deles.”
O Vermelho e o Negro, Stendhal

A menina de La Mole, de seu nome Mathilde, que é a personagem narcísica do romance, tem dificuldade em gerir as suas emoções, de modo que, uma atitude de uma dama ou de um fidalgo, pode ser vivida como se dissesse respeito à sua pessoa - auto-referencia e auto concentração excessiva – sendo interpretado como um ataque pessoal. A vergonha (sentida), publica, é uma humilhação insuportável. Abre-se a ferida (narcísica) no seu amor-próprio. Urge a reparação, pela retaliação, que a menina de La Mole expressa com uma zombaria, que nem sempre é comedida e, pode até manifestar-se com ira, o que evidencia a agressividade oral.
O “castigo” também tem por base a inveja e o prazer de humilhar. E, os sentimentos que provocaram no fidalgo ou na dama, são para Mathilde, muito difíceis de avaliar, pela sua dificuldade de empatia. Caso essa dama ou esse fidalgo se mostrem ofendidos, Mathilde poderá ir ao seu encontro, não tanto movida pela culpa, mas por lhe ser difícil conceber que deixaram de gostar dela, ou seja, para controlar o efeito que causou no outro. De resto, também gere mal a culpa.
À parte destes momentos, costuma evidenciar um certo desligamento da realidade, um olhar baço e pouco expressivo, acompanhado por falta de interesse para com os outros, o seu trabalho ou actividades, em particular para com a sua família, como se negasse a sua importância.
A imagem que a menina Mathilde exibe, é um falso self que encobre uma personalidade vulnerável e dependente.
Mathilde anseia amar, mas tem medo, como se as emoções do amor lhe provocassem o risco de fragmentação. Mas o que a menina Mathilde desconhece, é que para superar o amor – próprio ferido, não é ser amada, é amar o outro. Ou seja, sair do seu narcisismo.

2 comentários:

Anónimo disse...

Belíssimo texto. É pena que o narcisico jamais consiga mudar. O outro é invisível aos seus olhos, sem necessidades, sem desejos. Nem com a melhor das boas vontades podemos levá-lo a abdicar das suas defesas, por vezes tão patológicas. Por isso o melhor mesmo é desistir e seguir em frente, sem pena ou culpa, deixando também para trás o nosso desejo de omnipotência. Sim, porque acredito que é este desejo que nos faz muitas vezes ficar junto do narcísico, acreditando que o amanhã será diferente, que o conseguimos modificar, diminuir o seu sofrimento e fazê-lo compreender o nosso. Um narcísico será sempre um narcísico.

cristina simões disse...

O texto é um exercício de tentativa de compreensão do narcisismo. Se parecer belo, é bom para o meu narcisismo (o saudável, espero). Mudar é muito difícil para os narcísicos (patológicos), é entendido como uma forma de satisfazer o outro, o que é visto como uma fraqueza. Por esta razão, e não só, as relações amorosas com estes indivíduos são relações onde se exerce o poder. E tal como já escreveste aqui, relembrando Jung, onde há poder, não há amor. Faz-me muito sentido a tua ideia sobre a nossa omnipotência.
Obrigada pelo comentário.