domingo, 30 de janeiro de 2011

João Seabra Diniz



Anabela Mota Ribeiro entrevista o psicanalista João Seabra Diniz. Publicada no Suplemento Publica de hoje, transcrevo partes desse diálogo:
Presidente da Associação Portuguesa de Psicanálise, João Seabra Diniz explica tudo o que sempre quis saber sobre psicanálise e nunca teve oportunidade de perguntar, numa altura em que a Associação Psicanalítica Internacional faz cem anos. O colóquio In.Tolerância - A In-Suportável Diferença, aberto ao público nos dias 4 e 5 de Fevereiro, assinala a data em Portugal.

Porque é que o ser humano, que é um ser racional, faz tantas coisas que não são racionais?
A teoria psicanalítica foi a primeira a perceber que há uma parte do homem que não é racional. A irracionalidade faz parte da humanidade. A desumanidade faz parte da humanidade. O que se faz com isso, a maneira como se lida com essas forças - essa é a questão

O que se diz, e como se diz, sem filtro? Medo, desamor: é aquilo de que as pessoas mais falam no divã? São duas coisas importantes.
Estão muitas vezes ligadas. É uma das coisas de que mais falam. Penso, ao fim de muitos anos de trabalho, que um dos grandes sofrimentos das pessoas é a dificuldade de arranjar uma relação amorosa que seja boa e que dure. Boa e breve, arranjam-se muitas. O amor seria um fruto de qualquer coisa que é contrária ao desamor. O medo acompanha a pessoa desde pequena. Leva à angústia, a sentimentos de abandono. Uma das funções fundamentais (do pai, do mãe) é a de consolar o filho. O filho que chora, que está triste, desconfortável. Ao observar as crianças, aprendemos coisas extraordinárias. Mas as crianças falam uma linguagem que não é exactamente a nossa.

Como decifrá-la? Como olhá-los com atenção?
Acho que é ouvi-los sem querer integrar aquilo que dizem dentro da nossa gramática. Lembro-me de um caso, num feriado do 1 de Maio, em que eu tinha saído para um fim-de-semana no campo com a minha mulher. Na aldeia da Beira Baixa, onde estávamos, comprámos um pão grande, branco, muito bonito. Pusemo-lo em cima de uma mesa, na casa de jantar. Veio visitar-nos uma pessoa que tinha uma filha com três anos; ela entrou, e a presença do pão grande, redondo, branco impunha-se. Ela ficou fascinada a olhar para a criança...

Lapso... Disse criança em vez de pão.
[riso] Já vai perceber porquê. Disse: "Olha, parece uma mãe." Parece absurdo. Como é que isto se processa? A criança não tinha a palavra adequada para dizer a emoção que sentia; dentro dela ficou à procura, entre as palavras que ela sabia, qual é que podia designar aquilo que estava a sentir. A palavra era "mãe". A mãe é que dá a alimentação. Aquela brancura [do pão]: Melanie Klein falaria do seio. Penso que não é necessariamente isso. Mas é uma sensação de plenitude, de inteireza, de aconchego.

De suficiência?
De suficiência. Uma das funções [da mãe] é trazer a solução para o medo, para a angústia. A mãe é um ambiente, um ecossistema de afectos de que a criança precisa para se sentir bem. As crianças pequenas, três, quatro, cinco anos, dizem, choramingando: "Quero a mãe." Não perguntam se a mãe sabe resolver aquele problema.

Somos, sobretudo, filhos de uma mãe ou de um pai? Uma das figuras parentais tem uma importância dominante sobre a outra na vida do filho?
O ideal seria que não houvesse preponderância, mas complementaridade e articulação. Muitas vezes acontece que um deles tem preponderância...

Muitas vezes? quase sempre?
Reparo numa coisa muito significativa: a maneira como as pessoas falam da casa paterna. A maior parte das pessoas diz: "A casa do meu pai" ou "A casa da minha mãe". Poucos são os que dizem: "A casa dos meus pais." Isto traduz atitudes diferentes em relação à preponderância de uma das figuras parentais. Aquele que se lembra de ser pequeno e ir para a cama da mãe. Ou para a cama dos meus pais. Isto tem importância no desenvolvimento de uma pessoa.

Na infância, o vínculo que se estabelece entre a criança e os pais, e a noção de que aquela plateia, que é constituída pelos pais, está interessada naquele conteúdo é fundamental. Pode falar deste aspecto?
Volto atrás. Há pouco tinha pensado dizer isto. Na relação primitiva da criança com a família, há alguns aspectos fundamentais apontados por Donald Meltzer, um autor muito respeitado na psicanálise. Vou dizer em inglês. A primeira é generating love. A segunda é promoting hope. A terceira é containing depressive anxiety, a quarta é thinking. No fim das quatro, vem o pensamento, sobre aquilo que se sentiu, se viveu. Veja a importância disto: poder gerar o amor, espontaneamente, numa relação que não é esforçada. O amor pode trazer muitas expectativas, muitas decepções; portanto, é importante que se promova a esperança. No meio disto, é possível acontecerem ansiedades, angústias, medos. Uma das funções fundamentais dos pais é serem capazes de conter a angústia da criança, dizerem-lhe: "Isto reconstrói-se." Depois, é preciso ensinar a criança a pensar nas coisas que sente.


Uma vez, numa sessão de análise, um jovem reflectia sobre a sua dificuldade em viver as decepções amorosas. Saiu-me, como interpretação, um terceto de Camões daquele poema famoso "Sete anos de pastor Jacob servia/ Labão, pai de Raquel, serrana bela/ Mas não servia ao pai, servia a ela,/ E a ela só por prémio pretendia." A história do Labão é que ele estava à espera da Raquel e quando chegou ao fim dos sete anos o pai deu-lhe a outra [filha]. Era um engano entre a pessoa que ele desejava e a pessoa que tinha.

O desencontro, nesse paciente, nesse poema, entre aquilo que ele queria e aquilo que acaba por encontrar; esse desencontro de nós com o destino, de nós connosco próprios, de nós com as nossas expectativas, e o desapontamento que resulta disso - não é inevitável esse desencontro?
É. O ponto passa pela maneira como a pessoa vive esse desencontro e o transforma numa construção. Há uma coisa inevitável: a consequência das escolhas. Não podemos viver sem fazer escolhas; uma das escolhas importantes é a escolha amorosa. À medida que escolhemos, renunciámos ao que ficou para trás.

Renunciamos?
[riso] É essa a questão. O escolher articula-se com o deixar para trás outras coisas.

Como é que se renuncia? Essa não é uma das enormes dificuldades? Como é que deixa de se ser criança que quer tudo?
Admito que outras pessoas possam ter outras opiniões, mas acho que nunca se renuncia completamente. Pode-se equilibrar as coisas, e a pessoa viver em paz com aquilo que não tem. Mas isso - viver em paz com o que não se tem - não é necessariamente o ter renunciado completamente. Isto fornece um estímulo para a procura de mais. Aquele que está sempre satisfeito não progride. Tem de haver sempre um objecto de amor, um ideal que se procura, e que continuamos a tentar alcançar e encontrar. As vias e os meios para fazer isso dependem imenso das circunstâncias, das pessoas. Isto faz-se muitas vezes de forma metafórica.


Por exemplo.
Um caso conhecidíssimo, o donjuanismo, aqueles homens que têm sempre de conquistar uma nova mulher. Mas isso faz com que nunca tenha nenhuma. É uma sensação de perda constante e de procura constante. É um jogo muito complexo de equilíbrios, para manter o equilíbrio do eu, dos investimentos afectivos, das frustrações, das agressividades. Uma vez ouvi a um psicanalista francês, um homem mais velho, com quem aprendi muito, esta imagem: os mobiles que se põem sobre a cama das crianças... aquilo está num equilíbrio precário. Se tocamos num deles, todos os outros têm de se reajustar. Ele dizia: "O equilíbrio do eu é assim." A arte de viver é isto, é conseguir novos equilíbrios, é progredir sempre.



1 comentário:

$hort disse...

http://antonioaraujo_1.tripod.com/

axo q vais gostar...

;-)