Entrevista de Paula Torres de Carvalho a António Coimbra de Matos, publicada no Jornal Publico a 30 de maio de 2000, com o título Quanto menos se sofrer melhor.
Publica-se a 3ª e ultima parte desta entrevista. As anteriores já se encontram neste blogue.
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Público – Dedicou toda a sua vida à psicanálise que continua a ser contestada como ciência…
ACM – O mal – estar que sempre houve em relação à psicanálise é que alguns analistas são mais ideólogos do que investigadores. E portanto aplicam as teorias já feitas. Mas há muitos outros psicanalistas para quem o que importa é a relação entre as pessoas e as teorias vêm depois. As teorias procuram dar uma compreensão mais global, específica e são sempre refutáveis e transitórias.
Publico – Mas a psicanálise é ou não é uma ciência?
ACM – É uma ciência mas há muita gente que a pratica como não – ciência. Como todas as ciências, observa os fatos e depois procura compreendê-los.
Publico – Mas em ciência confirmam-se ou infirmam-se hipóteses. Isso é possível em psicanálise?
ACM – Com certeza. As interpretações que fazemos em relação aos pacientes são sempre hipóteses. As respostas são objeto de estudo…
Publico – Na psicanálise seleciona- se uma amostra, testa-se…?
ACM – Não, mas a ciência não é só isso. Isso é a ciência dos grandes números…A diferença é que trabalhamos com sistemas mais complexos e portanto as variáveis são maiores e o número de fatores em jogo é muito maior. Acontece o mesmo em meteorologia, por exemplo, que lida com um sistema muito complexo, o que torna as previsões muito difíceis. Em psicanalise, as previsões a longo prazo, são mais difíceis mas não exequíveis…
Publico – Como comenta a evolução interna da psicanálise?
ACM – É feita daquilo que se vai verificando nos pacientes, do que se vai investigando e da abertura em relação a outros ramos do conhecimento.
Publico – Freud está ultrapassado?
ACM – Nalgumas coisas está, noutras não. Mas essa pergunta para mim não faz sentido. É a mesma coisa de perguntar se Newton está ultrapassado. Claro que estão, um e outro; o desenvolvimento não para.
Publico – Muitos psicanalistas continuam a considerar Freud uma referência intocável. Isso já não faz sentido?
ACM _ Para mim não, mas faz para alguns. Que encaram a psicanálise de uma forma ideológica, religiosa…
Publico – Há quem considere a psicanálise como uma espécie de Igreja…
ACM – Em relação a alguns psicanalistas, é verdade. Mas esses, os que continuam a repetir Freud, são cada vez menos.
Publico – Isso contraria a evolução dos tempos. A psicanálise tem de acompanhar a mudança…
ACM – E não só da mudança dos tempos, mas da ciência e da própria psicanálise.
Publico – Como se situa a psicanálise face ao avanço das neurociências e da medicina?
ACM – Já há uma sociedade e grupos de psicanalistas e outros investigadores ligados às neurociências. Tem mesmo o nome de neuropsicanálise. E isso faz todo o sentido e é absolutamente necessário.
Publico – Portanto acha que deve existir uma certa abertura da psicanálise a outros conhecimentos e uma coexistência pluridisciplinar…
ACM – Sim; e transdisciplinar – contatar com os outros e procurar linguagens que possam ser comuns. Porém, insisto: há muita psicanálise que é do tipo religioso, ideológico. Atualmente as sociedades psicanalíticas são muito mais abertas, os psicanalistas investigam muito mais e contactam com as outras ciências, mas há ainda um grande numero de psicanalistas muito fechados.
Publico – A sociedade Portuguesa de Psicanálise é uma instituição fechada?
ACM – É das mais abertas.
Publico – Em comparação com as outras sociedades europeias?
ACM – Sim, embora hoje todas estejam mais abertas…A sociedade alemã é das mais abertas e as americanas são bastante abertas.
Publico – Qual foi a experiencia que mais o marcou como psicanalista?
ACM – Há casos em que o sucesso foi maior. Por exemplo, o de uma analisanda, psicóloga, que veio para análise comigo para ser psicanalista e durante a análise começou a descobrir que, afinal, não se interessava tanto pela psicologia nem pela psicanálise. Hoje é escritora. Isto mostra que as pessoas estão muitas vezes enganadas ao escolher um percurso.
Outro caso que me marcou bastante foi de uma pessoa que me procurou aos 50 anos por razões obsessivas; depois começou a verificar-se que era um homem que não tinha tido adolescência. È um qualificado investigador, mas passou os anos da adolescência a discutir filosofia zen… Tinha tido uma vida social muito limitada. Este homem fez uma mudança de 180 graus; hoje está totalmente diferente, escreve livros, faz gravura, continua a ser professor. Nunca pensei que um homem com 50 anos desse tamanha volta na sua vida.
Publico – Um caso de insucesso…
ACM – Um paciente que se consultou comigo durante cerca de dois anos. Era um homem muito sádico, muito agressivo, muito violento. Eu comecei a não suportar a agressividade daquele homem, não me senti bem e disse-lhe que era melhor ele procurar outra pessoa. E ele procurou outra pessoa com quem teve um sucesso razoável. Houve também o caso de um homem que fez uma psicoterapia analítica. Era um velho esquizofrénico que tinha estado internado vários anos. Quando veio ter comigo não fazia nada, mas depois retomou a profissão, casou-se …só que teve o azar da mulher morrer no parto tal como o bebé. Apesar disso aguentou tudo. Comecei a vê-lo mais espaçadamente; tinha melhorado bastante mas depois acabou por se suicidar durante um período depressivo.
Publico – Ficou com sentimentos de culpa?
ACM – Fica-se sempre. Sempre com a ideia que não se fez o suficiente. Penso que o meu erro foi tê-lo largado cedo demais.
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