Entrevista de Teresa de Sousa a David Owen, antigo político britânico e neurologista, autor do livro Na Doença e no Poder (Leya/D. Quixote), que foi publicada no Jornal Publico a 1.6.2011.
Essa entrevista, com o título A crise dos mísseis de Cuba foi provocada por uma injecção de anfetaminas?, reproduzida aqui na íntegra, identifica “a síndrome de hubris” ou síndrome da presunção nos políticos que o autor caracteriza pela "arrogância", "desprezo", "superioridade", "excesso de confiança" ou até alguma coisa semelhante a "autismo", assim como perda do sentido da realidade (ler a descrição do síndrome, aqui neste blogue, na Etiqueta O poder).
“Kennedy tinha a sua doença controlada quando teve de lidar com a crise dos mísseis de Cuba. Um ano antes, teria sido perigosamente diferente. A história das doenças dos homens de quem depende o curso da História. Incluindo a doença do poder.
Quase sem darmos por isso, Tony Blair entra logo no início da conversa de circunstância que precede esta entrevista. No seu livro de 500 páginas sobre as doenças dos grandes estadistas do século passado, Na Doença e no Poder (Leya/D. Quixote), o antigo primeiro-ministro britânico aparece como o exemplo mais actual de um mal específico e muito comum aos líderes mundiais. David Owen chama-lhe "a síndrome de hubris". Não há tradução exacta para esta palavra que vem dos gregos e que sintetiza o significado de outras. Que podem ser "arrogância", "desprezo", "superioridade", "excesso de confiança" ou até alguma coisa semelhante a "autismo", perda do sentido da realidade. O poder segrega-a. Não apenas o dos políticos, mas o de todos aqueles que detêm uma posição de extremo poder. Blair perdeu a noção da realidade? No decorrer da conversa, a resposta acaba por não ser convincente. Afinal, tudo é relativo e nada é absoluto quando se trata de avaliar a "saúde" de um líder político. Roosevelt vivia numa cadeira de rodas. Kennedy tinha a doença de Addison (falha total ou parcial das glândulas supra-renais). Churchill... talvez tivesse apenas um problema de idade. Ah, e não padecia da síndrome de hubris. A tese principal do político britânico que fundou o Partido Social-Democrata em 1981, que foi antes chefe dos Negócios Estrangeiros e o enviado da União Europeia para os Balcãs durante a guerra na Bósnia, é apenas que tem de haver transparência absoluta sobre a saúde de quem decide o destino do mundo. Falta dizer que David Owen era médico de profissão. Sabe, pois, do que fala.
Já estamos, quase sem querer, a falar de Tony Blair, ao qual dedica um capítulo extenso do seu livro.
D.O: Quando as coisas correm bem, recebem-se todas as recompensas; quando correm mal, as consequências são pesadas. A guerra não é uma decisão como as outras. É a decisão mais importante que qualquer líder pode tomar. Se, ainda por cima, se induz a Câmara dos Comuns em erro com informações que podemos considerar falsas, então as coisas são muito sérias. E há uma longa tradição [no Reino Unido] de que, perante ela, se tem de dizer a verdade. Mesmo que não se faça o mesmo cá fora. A penalização é ostracismo. A defesa de Tony Blair é que ele acreditava que era verdade. Não duvido disso e a maioria das pessoas também não. Mas hoje nós sabemos que ele exagerou o que lhe diziam os serviços de informações para nos levar para a guerra e isso é muito sério... Hoje, ele é muito impopular no Reino Unido, embora não o seja nos Estados Unidos.
Não era minha intenção começar esta entrevista por Blair...
D.O: É uma boa questão. Apoiei-o fortemente no início.
E muita gente também.
D.O:É verdade, mas fui mais longe e apoiei a sua decisão sobre a guerra [no Iraque] e não penso que ela tenha sido ilegal em termos estritamente jurídicos. Mas hoje acredito que ele enganou a Câmara dos Comuns e o país.
Já se encontrou pessoalmente com o Presidente Barack Obama?
D.O:Não.
Então não lhe posso perguntar se pensa que ele é um líder mental e fisicamente saudável?
D. O: (Risos) Ele parece estar muito bem. Todos nós sabemos que fuma, mas isso não chega para lhe afectar a saúde. E, mentalmente, parece ser uma pessoa muito séria e ponderada, que não gosta de tomar decisões apressadas, que leva o seu tempo. É uma característica muito boa para alguém na sua posição. Veja como ele tomou a decisão, muito difícil, de aumentar as tropas no Afeganistão. Não se apressou nem se importou de mostrar aos militares que precisava de tempo e que não aceitaria pressões. Tomou uma decisão extremamente corajosa em relação a Bin Laden. Poderia ter optado por tentar atingi-lo com um míssil de cruzeiro mas nunca teria tido a informação que obteve e haveria sempre alguma dúvida sobre se teria sido mesmo Bin Laden. Lembra-se que o Presidente Carter também teve de enviar helicópteros para o Irão naquela crise da embaixada americana em Teerão (1980) e foi um desastre? Quando aquele primeiro helicóptero foi danificado e ele estava a ver, deve ter pensado: "Lá vamos nós outra vez".
Obama escolheu o caminho mais difícil. Revelou cuidado, prudência, mas também coragem. Foi um êxito merecido que espero que o ajude na reeleição.
O seu livro é fascinante mas também bastante assustador. Nós todos dependemos das decisões desses líderes e dá a ideia que algumas dessas decisões foram tomadas por pessoas seriamente afectadas por males físicos ou até por distúrbios mentais. A saúde é assim tão importante?
D. O: O que penso é que nenhum líder pode dizer que a sua saúde é uma questão privada. Quando se vai para a vida pública e, sobretudo, quando se pretende chegar a chefe de Governo, é preciso aceitar a intrusão de uma avaliação médica independente. Hoje, na América, quem quer ser candidato a Presidente só muito dificilmente consegue evitar dar toda a informação sobre o seu passado médico. Reparou como o senador John McCain deu toda a informação sobre o seu estado de saúde desde os tempos em que foi prisioneiro de guerra [no Vietname] e também os detalhes sobre o seu melanoma na pele? Os dias do Presidente Kennedy foram o ponto alto dessa forma de esconder a verdadeira condição física. Ele tinha doença de Addison e escondeu...
Hoje teria sido impossível.
D. O: Também porque hoje a ciências médicas estão muito desenvolvidas. Nunca direi que o facto de ter a doença de Addison o impediria de ser Presidente dos EUA. O Presidente Kennedy mostrou, aliás, que podia ser um Presidente muito eficaz. O seu problema era com todas as outras drogas que tomava e o facto de ter cinco ou seis médicos a agirem separadamente, sem que nenhum soubesse dos tratamentos que os outros estavam a administrar-lhe. Para a função política mais sofisticada do mundo, não é nada aconselhável.
Relaciona no seu livro a sua condição física e os remédios que tomava com alguns acontecimentos muito importantes da sua presidência, atribuindo-lhes consequências. Por exemplo, diz que o encontro de Viena com o líder soviético Nikita Krutchov pode ter corrido mal por causa disso. Mas, pouco depois, quando Kennedy teve de lidar com a crise dos mísseis de Cuba, agiu com uma capacidade e uma frieza notáveis.
D. O: Isso é verdade e creio que é muito importante. No primeiro ano de mandato, quando o seu estado de saúde não estava controlado, não creio que pudesse ter lidado com a crise dos mísseis de maneira nem por sombras próxima da que demonstrou em 1962, quando a sua condição médica estava muito melhor. Lidou mal com a primeira crise de Cuba, na Baía dos Porcos. Fez alterações substanciais aos planos de Eisenhower e não viu as consequências. Quando lidou com a crise dos mísseis, nomeou uma comissão da qual o seu irmão era o responsável e resistiu aos conselhos dos seus chefes militares. Lidou magnificamente com a situação.
Podemos encontrar duas explicações para esses factos. A primeira é a questão da saúde, a segunda pode ser a falta de experiência. Não sabemos exactamente qual é a explicação certa.
D. O: Concordo. Mas quando ele se encontra com Krutchov em Viena, há uma relativa certeza de que lhe foi aplicada uma injecção intravenosa de anfetaminas. E sabemos o que isso provoca: excitação, seguida de uma quebra depressiva. A importância desse encontro é que Krutchov subestimou-o e, meses depois, decidiu instalar mísseis e ogivas nucleares em Cuba. Se Kennedy estivesse na sua condição normal, penso que Krutchov teria pensado duas vezes antes de tomar essa decisão.
O seu livro dedica bastante espaço a Kennedy mas também a Anthony Eden, o primeiro-ministro britânico que se confrontou com a crise do Suez e a humilhação subsequente. A História regista Kennedy como quase um ícone. Eden como um fracassado. Avaliamos os líderes com critérios diferentes dos que usamos para outras pessoas?
D. O: Hoje também sabemos que Anthony Eden estava a tomar medicamentos, incluindo anfetaminas. A aventura do Suez, com a França e o envolvimento clandestino de Israel, foi um erro e, mais do que isso, um fracasso. Eisenhower forçou-os a retirar. Mas também não há hoje qualquer dúvida de que ele mentiu aos Comuns, deu a impressão de que não tinha havido nenhum contacto prévio com Israel. E, no fim, quando teve de abandonar os Comuns e se demitiu de primeiro-ministro, não foi apenas por razões de saúde mas porque tinha perdido a autoridade. Penso que esta é também uma das razões pelas quais Blair acabou por sair. Há aquela história da sua combinação com Brown e que saiu apenas quando quis. Ele sai quando percebeu que o país e, de algum modo, os Comuns não lhe perdoaram. D. O: A minha questão era outra. Podem ter doenças ou depressões, mas também não são pessoas normais. São excepcionais e, nessa medida, também devem ser avaliadas de forma excepcional. Churchill, Obama, Kennedy e até Blair são pessoas excepcionais.
No Reino Unido, temos aquele famoso ditado de lord Acton segundo o qual "todo o poder corrompe e o poder absoluto tende a corromper absolutamente". Mas, na carta em que faz essa observação, lord Acton diz outra coisa, muito interessante. Que devemos julgar os líderes, não com mais generosidade, mais compreensão, mais tolerância, mas com mais exigência. Devemos esperar e exigir deles padrões mais elevados.
D. O: Pois, mas Churchill, que é a mais extraordinária figura de um líder que podemos imaginar, teve uma carreira política pouco recomendável, de acordo com alguns dos nossos critérios actuais. E, depois, foi o que se viu. Lincoln também teve uma carreia parecida... Mas, sim, concordo, é preciso reflectir sobre isso. Ele tinha depressões muito sérias. Quando era ainda um jovem membro do Parlamento, costumava falar do medo que tinha das suas depressões, o seu "cão negro", como ele dizia. Mas há escassas evidências de que ele estivesse deprimido nos dois primeiros anos como primeiro-ministro. E era uma pessoa excepcional. Muita gente disse, incluindo alguns psiquiatras, que tinha desordem bipolar. Nunca consegui encontrar qualquer evidência disso. Penso que temos de estar preparados para dizer que estas pessoas são tão excepcionais e têm talentos tão invulgares que devemos, em algumas ocasiões, admitir que não haja um critério...
Por isso, digo que é difícil avaliá-los.
Foi também por isso que introduzi esta categoria da "síndrome de hubris", que evito usar para alguém que tenha sofrido de depressão. Não me encontrei nunca com a maioria desses líderes que analiso no livro. Não sou um médico a falar com o seu doente. Não é fácil fazer um diagnóstico claro sobre se há ou não uma história de depressão.
Mas, quando olhamos para Churchill, é fácil de ver que há uma grande dose de hubris, mas...
Ele controlava-a?
D. O: Penso que sim. Dou no livro o exemplo dessa carta que a sua mulher lhe escreveu, ao mesmo tempo muito generosa e muito dura. Ela tinha um profundo efeito sobre ele.
Muita gente me diz que todos os líderes têm esta síndrome. Mas não é verdade. Tivemos outro primeiro-ministro muito famoso, Clement Atlee, que sucedeu a Churchill logo a seguir à guerra, que era muito diferente mas que considero um dos nossos maiores primeiros-ministros e, em muitos aspectos, da mesma categoria. Ele era absolutamente livre de qualquer sintoma de hubris. Mas tinha uma capacidade de decisão, uma determinação, uma autoconfiança enormes.
Mas tem razão. Devemos permitir aos grandes homens que tenham falhas e devem também ser capazes de correr grandes riscos. Não devemos uniformizá-los. Mas, ao mesmo tempo, devemos estar atentos a esta síndrome de hubris, que pode ser perigosa.
Há líderes muito mais normais que também são afectados por essa doença. George W. Bush...
George Bush era uma figura relativamente modesta. Quando foi desafiado pelo 11 de Setembro, levou um dia ou dois a absorver o seu impacto. Quando foi às ruínas das Torres Gémeas em Nova Iorque, com aquele megafone na mão, transformou-se num homem maior. Mas foi também aí que começou a intoxicar-se de poder. Essa cena no porta-aviões, em Maio de 2003, proclamando "missão cumprida" era já a síndrome dehubris de uma forma claríssima.
E afinal a missão estava muito longe de estar cumprida. Isso quer dizer que Bush perdeu o contacto com a realidade? Ele comparava o Iraque à Alemanha depois da guerra e acreditava que tudo decorria da mesma maneira.
D. O: Sabemos hoje muito mais sobre a sua personalidade, bastante mais do que a América sabia quando o elegeu. E sabemos que teve um período de alcoolismo. As personalidades com tendência para uma qualquer adição têm sempre alguns problemas. Há também uma razoável avaliação sobre o seu défice de atenção. Tudo isto é contrariado por muita gente que trabalhou com ele ou que o conheceu bem, que diz que ele é inteligente, que colocava as questões certas, que estava muito mais por dentro dos assuntos do que por vezes parecia. Temos de pesar as duas coisas.
Mas um homem que consegue dizer o que ele disse no porta-aviões... Naquele preciso momento, Bagdad estava num caos. Na sua autobiografia, escrita depois de ter saído da Casa Branca, Bush tem um parágrafo no qual, de forma aberta, admite que não ter posto tropas suficientes no terreno [depois da queda de Saddam] foi um enorme erro.
Compare as memórias dele com as memórias de Blair. Ele não admite nada disto. Não tem a mesma abertura perante as razões do fracasso, nenhum reconhecimento, nenhuma compreensão. Blair foi avisado em Maio de 2003 sobre a necessidade de mais tropas. É a grande diferença entre Churchill, Blair e Bush. Churchill era também capaz de agir contra qualquer conselho ou recomendação. Mas era um soldado, estudou a guerra e tinha uma atenção considerável pelos detalhes.
Já falámos que ele nunca sofreu dessa síndrome dehubris. Refere que uma das razões pode ter sido o seu sentido de humor e a capacidade de se rir de si próprio.
D. O: O seu neto, Christopher Sommers, que é membro do Parlamento, conta que, quando tinha cinco ou seis anos, foi ter com o avô à biblioteca e lhe perguntou: "É verdade que é o homem mais famoso do mundo?" "Sim, sim, mas agora põe-te a andar daqui para fora."
Tinha esse sentimento muito humano de humor que não lhe deixava o poder subir à cabeça.
Roosevelt, que considero o líder mais interessante do século XX, tinha um tipo diferente de humor, um humor cínico. Já depois de ter publicado o meu livro, editou-se na América uma obra muito interessante que estuda esse momento, em 1937, em que Roosevelt tenta "reformar" o Supremo Tribunal [que era demasiado conservador e impedia a adopção da legislação do New Deal]. O livro chama-se Poder Supremo. A palavra hubris está lá todo o tempo, mas acaba por ilibá-lo dela. Diz que foi uma decisão errada mas muito bem pensada. Acabou por ser derrotado pelos próprios senadores democratas. Roosevelt é outro exemplo do líder que corre riscos, que comete erros, mas que é um líder político brilhante.
Mas era um homem muito doente. Dirigiu a guerra de cadeira de rodas.
D. O: Esse é outro aspecto da sua personalidade: como a doença pode ter feito o homem. A poliomielite fez dele uma personalidade ainda mais forte. Eleanor Roosevelt disse sobre ele qualquer coisa como isto: "Penso que ele também teria sido Presidente se não tivesse tido poliomielite, mas tinha sido um Presidente muito diferente."
Creio que ele tinha medo do juízo da opinião pública. Não vivi nessa época, mas tenho a sensação de que os americanos tinham plena consciência da sua doença mas não queriam pensar muito nisso. Quando, durante a guerra, ele se pôs de pé e andou, com o filho a ampará-lo, sabia que os americanos queriam que o mundo visse um Presidente forte. Eles não se importavam, mas queriam.
Clinton, um homem muito inteligente, decidiu que a cadeira de rodas de Roosevelt devia estar no seu memorial. Creio sinceramente que é uma decisão "politicamente correcta" que não deixa de ser um erro.
Churchill também mentiu sobre a sua saúde. Em Washington, em plena guerra, teve um pequeno ataque cardíaco. Foi uma boa mentira porque ele precisava de toda a sua capacidade e de toda a sua força nesse preciso momento.
Se acreditar no seu médico, ele deixou que Churchill pensasse que a dor no peito se devia ao facto de ter feito muita força para abrir uma janela. Mas Churchill talvez soubesse a verdade. Não sabemos. Isso foi em Dezembro de 1941, quando Roosevelt entrou na guerra. Há esse período extraordinário entre Maio de 1940 e Dezembro de 1941 em que ele quase sozinho tinha todo o poder. A partir daí, teve de adaptar-se à emergência de Estaline e ao poder considerável de Roosevelt. Creio que é aí que começa um triste declínio... Contrariado, depois, com a sua capacidade de resistência quando perde as eleições depois da guerra e volta a regressar. Voltando à síndrome dehubrise a Blair, que conheceu bem. Temos de admitir que era um líder inspirador no qual muita gente acreditava. Em que momento é que ele passou a sofrer da doença? D. O: Não o conhecia assim tão bem. Jantei duas vezes com ele no n.º 10 [de Downing Street]. Em Setembro de 1998, quando ele e Clinton decidiram enviar os primeiros mísseis contra o Iraque, e foi um jantar muito agradável. Estava de espírito aberto e discutimos as razões pelas quais, do meu ponto de vista, o Reino Unido não devia aderir ao euro. A sua ideia era a oposta. Depois voltámos a falar em Junho de 2002, antes da guerra. Completamente diferente, a sua maneira de falar e de se comportar. Devo confessar que não notei grande coisa, mas a minha mulher notou. Quando íamos para casa, disse-me: "Ele está muito messiânico". Hoje é uma expressão muito usada para descrevê-lo mas não naquela altura. Pensei nisso muito depois.
Qual foi o momento em que ele começou a mudar?
D. O: Penso que foi com o 11 de Setembro. Já tinha começado, um pouco, com o Kosovo. Começou a comportar-se como se tivesse sido ele a ganhar a guerra do Kosovo, como se estivesse no comando, quando se tratava de uma operação da NATO.Mas é verdade que foi ele o único que insistiu na necessidade de enviar soldados e que teve um papel importante na própria decisão. D. O: É verdade. Lembro-me de ele me telefonar para Berlim sobre isso. Eu sempre argumentei que devíamos estar preparados para colocar soldados no terreno. Tivemos uma conversa muito refrescante em que ele procurava alternativas. Mas já nessa altura, um dos conselheiros de Clinton dizia com imensa graça que ele "punha demasiada adrenalina nos Cornflakes".
Pensa que foi esse o momento em que Blair passou a ver-se como um grande líder e adquiriu a "doença"?
D. O: Penso. Ele compreendeu mal muitos dos aspectos da guerra, exagerou o seu próprio papel, mesmo que tenha apresentado os bons argumentos. Quando chegou ao Iraque foi demasiado complacente quanto, por exemplo, às tropas necessárias em Bagdad e começou a cometer imensos erros. Foi como se desligasse o interruptor, depois da operação militar. Não sabemos até que ponto essa taquicardia que teve na altura o afectou. Ele nunca foi completamente honesto sobre esse episódio. Não sabemos que remédios tomava. Apenas admitiu que talvez abusasse dos copos de vinho ao jantar e que bebia muito café... D. O: Mas isso não é a razão principal. No fim, creio que tinha alguma coisa que exigia tratamento. Atravessou uma crise pessoal em 2004. Teve problemas com a família e creio que esteve quase a demitir-se.
Duvidou do que estava a fazer?
D. O: Tenho a sensação que ele, não digo que se tenha sentido culpado, mas sentiu que tinha tomado decisões erradas.
Isso pode explicar a sua conversão ao catolicismo?
D. O: Penso que já era católico mas que, erradamente, acreditava que o primeiro-ministro do Reino Unido não podia ser católico.
Encontrou essa definição de hubris na Grécia antiga. É inerente à condição humana quando no exercício do poder...
Não há nada de novo no mundo.
Os gregos já a definiam para uma espécie de loucura inerente ao poder.
Os romanos usavam a palavra "cesarismo" com um sentido semelhante. Tinham uma enorme consciência dos perigos de estar no poder por demasiado tempo. Os gregos incluíam nessa ideia de hubris o sentimento de desprezo e de superioridade, de que não gostavam nada. O historiador britânico Ian Kershow tem uma excelente biografia de Hitler em que o primeiro volume, que vai até 1936, se chama Hubris.
Hitler, Mao, Estaline, Milosevic, Mladic. Conheceu os dois últimos pessoalmente. Podemos vê-los como a encarnação do mal, mas não se pode dizer que fossem loucos ou tivessem distúrbios particulares.
No sentido médico, loucura quer dizer que um indivíduo não é capaz de tomar decisões razoáveis por causa de uma doença mental. Não creio que se possa aplicar às pessoas que referiu. Mas usou outra palavra, mal (evil), que é um termo muito interessante. Amos Oz fala dele e avisa para o facto de, por causa do "politicamente correcto", termos deixado de usar essa palavra. Diz que temos de ser capazes de aceitar que o mal existe para podermos fazer-lhe face. Tentar encontrar explicações para esses casos, que não seja a maldade pura, é um erro. Por vezes, as pessoas agem de forma má e devemos estar preparados para o dizer.
Mladic é uma figura interessante. Era um racista e justificava isso pelo facto de o pai ter sido morto pelos ustachi (milícias fascistas) croatas durante a II Guerra. Odiava os croatas da mesma maneira que odiava os muçulmanos. Um dia, estava a falar comigo e descreveu a sua infância numa aldeia num vale perto de um rio, em frente de outra aldeia muçulmana do outro lado, e como os jovens das duas aldeias lutavam juntos na lama das margens. Quando fui à África do Sul e os afrikaander me diziam que era perfeitamente normal que os miúdos negros brincassem com os miúdos brancos mas que isso não devia pôr em causa o apartheid, lembrei-me dessa conversa. Eles não percebiam que o apartheid era inadmissível. Mladic era como P. W. Botha.
Mas, 16 anos depois de Srebrenica, que é algo que não se pode esquecer, o que sentiu quando ele agora foi preso?
D. O: Um tremendo alívio. Mas, ao fazermos da justiça absoluta a nossa única prioridade, esquecemos a reconciliação. É isso que tem acontecido na Bósnia. E, em situações como esta, em parte guerra civil e em parte guerra de agressão, em que as questões étnicas são dominantes, a reconciliação é fundamental. Houve milhares de pessoas que cometerem crimes. Devemos escolher os principais responsáveis e julgá-los. Como na Alemanha depois da guerra. Com Mladic, tratava-se de genocídio e não se podia virar a página. Agora pode encerrar-se esse capítulo.
A Europa levou quatro anos e 200 mil mortos a actuar na Bósnia. Menos tempo no Kosovo e alguns dias na Líbia. Aprendeu alguma coisa?
D. O: (Risos) Espero que sim. Uma das razões pelas quais escrevi este livro foi para levar as pessoas a pensar o que querem realmente de um líder. Capacidade de decisão e determinação? Capacidade de correr riscos? Outra coisa qualquer? Mas que é preciso estar sempre alerta em relação à hubris. E não só relativamente ao políticos. Esta tremenda crise que estamos a viver também resulta da personificação da hubris dos donos do sistema financeiro. E os políticos têm de ter mais coragem para confrontar os banqueiros. Têm de possuir pelo menos um pouco da bravura de Roosevelt, que enfrentou a crise de 1929, mudando as leis e confrontando-os. Ele disse aquela frase magnífica: "Eles odeiam-me e eu adoro que eles me odeiem". Os políticos não podem gostar tanto de si próprios que achem que toda a gente tem de gostar deles. Não podem ter medo de fazer inimigos.
Não falou de Margaret Thatcher. O problema com o seu país é que todos os primeiros-ministros tentam comparar-se com dois modelos diferentes, o bom e o mau, Churchill e Chamberlain. Sobretudo, quando têm de confrontar-se com a decisão da guerra.
D. O: Chamberlain, ao contrário de Churchill, sofria da síndrome dehubris, porque acreditava que só ele podia lidar com Hitler. Mais ninguém. Afastou todos os outros membros do gabinete que discordavam dele sobre a política de apaziguamento. Chegou à liderança já tarde e nunca tinha passado de um político local. Mas convenceu-se de que só ele era capaz de lidar com Hitler, cara a cara, de homem para homem. Hoje, isso acontece com demasiada frequência, essa ideia de que se resolvem as coisas numa base pessoal. Isso contém um certo perigo para as democracias europeias, onde os primeiros-ministros são poderosos e acham que podem tudo. Sarkozy, por exemplo.
A propósito, François Mitterrand escondeu a sua doença nos anos em que esteve no Eliseu. No livro, reconhece que isso não teve grande influência nos seus mandatos.
D. O: Ele não padecia da síndrome dehubris.
Talvez porque fosse um intelectual...
D. O: Talvez, e era também um homem muito complexo. Mas era, de facto, um intelectual. Em 1993, tentei convencê-lo a ter um encontro com Milosevic. Foi absolutamente brilhante no tratamento que lhe deu, para ver se tentava arrancar-lhe algumas concessões. Nessa altura, o cancro já estava bastante avançado.
Foi prisioneiro de guerra dos alemães e, talvez por isso, nunca criticou abertamente a Sérvia. Disse a Milosevic que era um grande admirador da coragem dos sérvios, disse que precisávamos que essa Sérvia regressasse aos Balcãs. Quando saímos, eu disse a Milosevic que tinha sido um discurso notável. Ele apenas respondeu: "Mas ele não mencionou as sanções". Era tudo o que lhe interessava. Dois homens opostos. Milosevic era completamente indiferente à História e ao apelo de grandeza que lhe estava a ser feito."
Já estamos, quase sem querer, a falar de Tony Blair, ao qual dedica um capítulo extenso do seu livro.
D.O: Quando as coisas correm bem, recebem-se todas as recompensas; quando correm mal, as consequências são pesadas. A guerra não é uma decisão como as outras. É a decisão mais importante que qualquer líder pode tomar. Se, ainda por cima, se induz a Câmara dos Comuns em erro com informações que podemos considerar falsas, então as coisas são muito sérias. E há uma longa tradição [no Reino Unido] de que, perante ela, se tem de dizer a verdade. Mesmo que não se faça o mesmo cá fora. A penalização é ostracismo. A defesa de Tony Blair é que ele acreditava que era verdade. Não duvido disso e a maioria das pessoas também não. Mas hoje nós sabemos que ele exagerou o que lhe diziam os serviços de informações para nos levar para a guerra e isso é muito sério... Hoje, ele é muito impopular no Reino Unido, embora não o seja nos Estados Unidos.
Não era minha intenção começar esta entrevista por Blair...
D.O: É uma boa questão. Apoiei-o fortemente no início.
E muita gente também.
D.O:É verdade, mas fui mais longe e apoiei a sua decisão sobre a guerra [no Iraque] e não penso que ela tenha sido ilegal em termos estritamente jurídicos. Mas hoje acredito que ele enganou a Câmara dos Comuns e o país.
Já se encontrou pessoalmente com o Presidente Barack Obama?
D.O:Não.
Então não lhe posso perguntar se pensa que ele é um líder mental e fisicamente saudável?
D. O: (Risos) Ele parece estar muito bem. Todos nós sabemos que fuma, mas isso não chega para lhe afectar a saúde. E, mentalmente, parece ser uma pessoa muito séria e ponderada, que não gosta de tomar decisões apressadas, que leva o seu tempo. É uma característica muito boa para alguém na sua posição. Veja como ele tomou a decisão, muito difícil, de aumentar as tropas no Afeganistão. Não se apressou nem se importou de mostrar aos militares que precisava de tempo e que não aceitaria pressões. Tomou uma decisão extremamente corajosa em relação a Bin Laden. Poderia ter optado por tentar atingi-lo com um míssil de cruzeiro mas nunca teria tido a informação que obteve e haveria sempre alguma dúvida sobre se teria sido mesmo Bin Laden. Lembra-se que o Presidente Carter também teve de enviar helicópteros para o Irão naquela crise da embaixada americana em Teerão (1980) e foi um desastre? Quando aquele primeiro helicóptero foi danificado e ele estava a ver, deve ter pensado: "Lá vamos nós outra vez".
Obama escolheu o caminho mais difícil. Revelou cuidado, prudência, mas também coragem. Foi um êxito merecido que espero que o ajude na reeleição.
O seu livro é fascinante mas também bastante assustador. Nós todos dependemos das decisões desses líderes e dá a ideia que algumas dessas decisões foram tomadas por pessoas seriamente afectadas por males físicos ou até por distúrbios mentais. A saúde é assim tão importante?
D. O: O que penso é que nenhum líder pode dizer que a sua saúde é uma questão privada. Quando se vai para a vida pública e, sobretudo, quando se pretende chegar a chefe de Governo, é preciso aceitar a intrusão de uma avaliação médica independente. Hoje, na América, quem quer ser candidato a Presidente só muito dificilmente consegue evitar dar toda a informação sobre o seu passado médico. Reparou como o senador John McCain deu toda a informação sobre o seu estado de saúde desde os tempos em que foi prisioneiro de guerra [no Vietname] e também os detalhes sobre o seu melanoma na pele? Os dias do Presidente Kennedy foram o ponto alto dessa forma de esconder a verdadeira condição física. Ele tinha doença de Addison e escondeu...
Hoje teria sido impossível.
D. O: Também porque hoje a ciências médicas estão muito desenvolvidas. Nunca direi que o facto de ter a doença de Addison o impediria de ser Presidente dos EUA. O Presidente Kennedy mostrou, aliás, que podia ser um Presidente muito eficaz. O seu problema era com todas as outras drogas que tomava e o facto de ter cinco ou seis médicos a agirem separadamente, sem que nenhum soubesse dos tratamentos que os outros estavam a administrar-lhe. Para a função política mais sofisticada do mundo, não é nada aconselhável.
Relaciona no seu livro a sua condição física e os remédios que tomava com alguns acontecimentos muito importantes da sua presidência, atribuindo-lhes consequências. Por exemplo, diz que o encontro de Viena com o líder soviético Nikita Krutchov pode ter corrido mal por causa disso. Mas, pouco depois, quando Kennedy teve de lidar com a crise dos mísseis de Cuba, agiu com uma capacidade e uma frieza notáveis.
D. O: Isso é verdade e creio que é muito importante. No primeiro ano de mandato, quando o seu estado de saúde não estava controlado, não creio que pudesse ter lidado com a crise dos mísseis de maneira nem por sombras próxima da que demonstrou em 1962, quando a sua condição médica estava muito melhor. Lidou mal com a primeira crise de Cuba, na Baía dos Porcos. Fez alterações substanciais aos planos de Eisenhower e não viu as consequências. Quando lidou com a crise dos mísseis, nomeou uma comissão da qual o seu irmão era o responsável e resistiu aos conselhos dos seus chefes militares. Lidou magnificamente com a situação.
Podemos encontrar duas explicações para esses factos. A primeira é a questão da saúde, a segunda pode ser a falta de experiência. Não sabemos exactamente qual é a explicação certa.
D. O: Concordo. Mas quando ele se encontra com Krutchov em Viena, há uma relativa certeza de que lhe foi aplicada uma injecção intravenosa de anfetaminas. E sabemos o que isso provoca: excitação, seguida de uma quebra depressiva. A importância desse encontro é que Krutchov subestimou-o e, meses depois, decidiu instalar mísseis e ogivas nucleares em Cuba. Se Kennedy estivesse na sua condição normal, penso que Krutchov teria pensado duas vezes antes de tomar essa decisão.
O seu livro dedica bastante espaço a Kennedy mas também a Anthony Eden, o primeiro-ministro britânico que se confrontou com a crise do Suez e a humilhação subsequente. A História regista Kennedy como quase um ícone. Eden como um fracassado. Avaliamos os líderes com critérios diferentes dos que usamos para outras pessoas?
D. O: Hoje também sabemos que Anthony Eden estava a tomar medicamentos, incluindo anfetaminas. A aventura do Suez, com a França e o envolvimento clandestino de Israel, foi um erro e, mais do que isso, um fracasso. Eisenhower forçou-os a retirar. Mas também não há hoje qualquer dúvida de que ele mentiu aos Comuns, deu a impressão de que não tinha havido nenhum contacto prévio com Israel. E, no fim, quando teve de abandonar os Comuns e se demitiu de primeiro-ministro, não foi apenas por razões de saúde mas porque tinha perdido a autoridade. Penso que esta é também uma das razões pelas quais Blair acabou por sair. Há aquela história da sua combinação com Brown e que saiu apenas quando quis. Ele sai quando percebeu que o país e, de algum modo, os Comuns não lhe perdoaram. D. O: A minha questão era outra. Podem ter doenças ou depressões, mas também não são pessoas normais. São excepcionais e, nessa medida, também devem ser avaliadas de forma excepcional. Churchill, Obama, Kennedy e até Blair são pessoas excepcionais.
No Reino Unido, temos aquele famoso ditado de lord Acton segundo o qual "todo o poder corrompe e o poder absoluto tende a corromper absolutamente". Mas, na carta em que faz essa observação, lord Acton diz outra coisa, muito interessante. Que devemos julgar os líderes, não com mais generosidade, mais compreensão, mais tolerância, mas com mais exigência. Devemos esperar e exigir deles padrões mais elevados.
D. O: Pois, mas Churchill, que é a mais extraordinária figura de um líder que podemos imaginar, teve uma carreira política pouco recomendável, de acordo com alguns dos nossos critérios actuais. E, depois, foi o que se viu. Lincoln também teve uma carreia parecida... Mas, sim, concordo, é preciso reflectir sobre isso. Ele tinha depressões muito sérias. Quando era ainda um jovem membro do Parlamento, costumava falar do medo que tinha das suas depressões, o seu "cão negro", como ele dizia. Mas há escassas evidências de que ele estivesse deprimido nos dois primeiros anos como primeiro-ministro. E era uma pessoa excepcional. Muita gente disse, incluindo alguns psiquiatras, que tinha desordem bipolar. Nunca consegui encontrar qualquer evidência disso. Penso que temos de estar preparados para dizer que estas pessoas são tão excepcionais e têm talentos tão invulgares que devemos, em algumas ocasiões, admitir que não haja um critério...
Por isso, digo que é difícil avaliá-los.
Foi também por isso que introduzi esta categoria da "síndrome de hubris", que evito usar para alguém que tenha sofrido de depressão. Não me encontrei nunca com a maioria desses líderes que analiso no livro. Não sou um médico a falar com o seu doente. Não é fácil fazer um diagnóstico claro sobre se há ou não uma história de depressão.
Mas, quando olhamos para Churchill, é fácil de ver que há uma grande dose de hubris, mas...
Ele controlava-a?
D. O: Penso que sim. Dou no livro o exemplo dessa carta que a sua mulher lhe escreveu, ao mesmo tempo muito generosa e muito dura. Ela tinha um profundo efeito sobre ele.
Muita gente me diz que todos os líderes têm esta síndrome. Mas não é verdade. Tivemos outro primeiro-ministro muito famoso, Clement Atlee, que sucedeu a Churchill logo a seguir à guerra, que era muito diferente mas que considero um dos nossos maiores primeiros-ministros e, em muitos aspectos, da mesma categoria. Ele era absolutamente livre de qualquer sintoma de hubris. Mas tinha uma capacidade de decisão, uma determinação, uma autoconfiança enormes.
Mas tem razão. Devemos permitir aos grandes homens que tenham falhas e devem também ser capazes de correr grandes riscos. Não devemos uniformizá-los. Mas, ao mesmo tempo, devemos estar atentos a esta síndrome de hubris, que pode ser perigosa.
Há líderes muito mais normais que também são afectados por essa doença. George W. Bush...
George Bush era uma figura relativamente modesta. Quando foi desafiado pelo 11 de Setembro, levou um dia ou dois a absorver o seu impacto. Quando foi às ruínas das Torres Gémeas em Nova Iorque, com aquele megafone na mão, transformou-se num homem maior. Mas foi também aí que começou a intoxicar-se de poder. Essa cena no porta-aviões, em Maio de 2003, proclamando "missão cumprida" era já a síndrome dehubris de uma forma claríssima.
E afinal a missão estava muito longe de estar cumprida. Isso quer dizer que Bush perdeu o contacto com a realidade? Ele comparava o Iraque à Alemanha depois da guerra e acreditava que tudo decorria da mesma maneira.
D. O: Sabemos hoje muito mais sobre a sua personalidade, bastante mais do que a América sabia quando o elegeu. E sabemos que teve um período de alcoolismo. As personalidades com tendência para uma qualquer adição têm sempre alguns problemas. Há também uma razoável avaliação sobre o seu défice de atenção. Tudo isto é contrariado por muita gente que trabalhou com ele ou que o conheceu bem, que diz que ele é inteligente, que colocava as questões certas, que estava muito mais por dentro dos assuntos do que por vezes parecia. Temos de pesar as duas coisas.
Mas um homem que consegue dizer o que ele disse no porta-aviões... Naquele preciso momento, Bagdad estava num caos. Na sua autobiografia, escrita depois de ter saído da Casa Branca, Bush tem um parágrafo no qual, de forma aberta, admite que não ter posto tropas suficientes no terreno [depois da queda de Saddam] foi um enorme erro.
Compare as memórias dele com as memórias de Blair. Ele não admite nada disto. Não tem a mesma abertura perante as razões do fracasso, nenhum reconhecimento, nenhuma compreensão. Blair foi avisado em Maio de 2003 sobre a necessidade de mais tropas. É a grande diferença entre Churchill, Blair e Bush. Churchill era também capaz de agir contra qualquer conselho ou recomendação. Mas era um soldado, estudou a guerra e tinha uma atenção considerável pelos detalhes.
Já falámos que ele nunca sofreu dessa síndrome dehubris. Refere que uma das razões pode ter sido o seu sentido de humor e a capacidade de se rir de si próprio.
D. O: O seu neto, Christopher Sommers, que é membro do Parlamento, conta que, quando tinha cinco ou seis anos, foi ter com o avô à biblioteca e lhe perguntou: "É verdade que é o homem mais famoso do mundo?" "Sim, sim, mas agora põe-te a andar daqui para fora."
Tinha esse sentimento muito humano de humor que não lhe deixava o poder subir à cabeça.
Roosevelt, que considero o líder mais interessante do século XX, tinha um tipo diferente de humor, um humor cínico. Já depois de ter publicado o meu livro, editou-se na América uma obra muito interessante que estuda esse momento, em 1937, em que Roosevelt tenta "reformar" o Supremo Tribunal [que era demasiado conservador e impedia a adopção da legislação do New Deal]. O livro chama-se Poder Supremo. A palavra hubris está lá todo o tempo, mas acaba por ilibá-lo dela. Diz que foi uma decisão errada mas muito bem pensada. Acabou por ser derrotado pelos próprios senadores democratas. Roosevelt é outro exemplo do líder que corre riscos, que comete erros, mas que é um líder político brilhante.
Mas era um homem muito doente. Dirigiu a guerra de cadeira de rodas.
D. O: Esse é outro aspecto da sua personalidade: como a doença pode ter feito o homem. A poliomielite fez dele uma personalidade ainda mais forte. Eleanor Roosevelt disse sobre ele qualquer coisa como isto: "Penso que ele também teria sido Presidente se não tivesse tido poliomielite, mas tinha sido um Presidente muito diferente."
Creio que ele tinha medo do juízo da opinião pública. Não vivi nessa época, mas tenho a sensação de que os americanos tinham plena consciência da sua doença mas não queriam pensar muito nisso. Quando, durante a guerra, ele se pôs de pé e andou, com o filho a ampará-lo, sabia que os americanos queriam que o mundo visse um Presidente forte. Eles não se importavam, mas queriam.
Clinton, um homem muito inteligente, decidiu que a cadeira de rodas de Roosevelt devia estar no seu memorial. Creio sinceramente que é uma decisão "politicamente correcta" que não deixa de ser um erro.
Churchill também mentiu sobre a sua saúde. Em Washington, em plena guerra, teve um pequeno ataque cardíaco. Foi uma boa mentira porque ele precisava de toda a sua capacidade e de toda a sua força nesse preciso momento.
Se acreditar no seu médico, ele deixou que Churchill pensasse que a dor no peito se devia ao facto de ter feito muita força para abrir uma janela. Mas Churchill talvez soubesse a verdade. Não sabemos. Isso foi em Dezembro de 1941, quando Roosevelt entrou na guerra. Há esse período extraordinário entre Maio de 1940 e Dezembro de 1941 em que ele quase sozinho tinha todo o poder. A partir daí, teve de adaptar-se à emergência de Estaline e ao poder considerável de Roosevelt. Creio que é aí que começa um triste declínio... Contrariado, depois, com a sua capacidade de resistência quando perde as eleições depois da guerra e volta a regressar. Voltando à síndrome dehubrise a Blair, que conheceu bem. Temos de admitir que era um líder inspirador no qual muita gente acreditava. Em que momento é que ele passou a sofrer da doença? D. O: Não o conhecia assim tão bem. Jantei duas vezes com ele no n.º 10 [de Downing Street]. Em Setembro de 1998, quando ele e Clinton decidiram enviar os primeiros mísseis contra o Iraque, e foi um jantar muito agradável. Estava de espírito aberto e discutimos as razões pelas quais, do meu ponto de vista, o Reino Unido não devia aderir ao euro. A sua ideia era a oposta. Depois voltámos a falar em Junho de 2002, antes da guerra. Completamente diferente, a sua maneira de falar e de se comportar. Devo confessar que não notei grande coisa, mas a minha mulher notou. Quando íamos para casa, disse-me: "Ele está muito messiânico". Hoje é uma expressão muito usada para descrevê-lo mas não naquela altura. Pensei nisso muito depois.
Qual foi o momento em que ele começou a mudar?
D. O: Penso que foi com o 11 de Setembro. Já tinha começado, um pouco, com o Kosovo. Começou a comportar-se como se tivesse sido ele a ganhar a guerra do Kosovo, como se estivesse no comando, quando se tratava de uma operação da NATO.Mas é verdade que foi ele o único que insistiu na necessidade de enviar soldados e que teve um papel importante na própria decisão. D. O: É verdade. Lembro-me de ele me telefonar para Berlim sobre isso. Eu sempre argumentei que devíamos estar preparados para colocar soldados no terreno. Tivemos uma conversa muito refrescante em que ele procurava alternativas. Mas já nessa altura, um dos conselheiros de Clinton dizia com imensa graça que ele "punha demasiada adrenalina nos Cornflakes".
Pensa que foi esse o momento em que Blair passou a ver-se como um grande líder e adquiriu a "doença"?
D. O: Penso. Ele compreendeu mal muitos dos aspectos da guerra, exagerou o seu próprio papel, mesmo que tenha apresentado os bons argumentos. Quando chegou ao Iraque foi demasiado complacente quanto, por exemplo, às tropas necessárias em Bagdad e começou a cometer imensos erros. Foi como se desligasse o interruptor, depois da operação militar. Não sabemos até que ponto essa taquicardia que teve na altura o afectou. Ele nunca foi completamente honesto sobre esse episódio. Não sabemos que remédios tomava. Apenas admitiu que talvez abusasse dos copos de vinho ao jantar e que bebia muito café... D. O: Mas isso não é a razão principal. No fim, creio que tinha alguma coisa que exigia tratamento. Atravessou uma crise pessoal em 2004. Teve problemas com a família e creio que esteve quase a demitir-se.
Duvidou do que estava a fazer?
D. O: Tenho a sensação que ele, não digo que se tenha sentido culpado, mas sentiu que tinha tomado decisões erradas.
Isso pode explicar a sua conversão ao catolicismo?
D. O: Penso que já era católico mas que, erradamente, acreditava que o primeiro-ministro do Reino Unido não podia ser católico.
Encontrou essa definição de hubris na Grécia antiga. É inerente à condição humana quando no exercício do poder...
Não há nada de novo no mundo.
Os gregos já a definiam para uma espécie de loucura inerente ao poder.
Os romanos usavam a palavra "cesarismo" com um sentido semelhante. Tinham uma enorme consciência dos perigos de estar no poder por demasiado tempo. Os gregos incluíam nessa ideia de hubris o sentimento de desprezo e de superioridade, de que não gostavam nada. O historiador britânico Ian Kershow tem uma excelente biografia de Hitler em que o primeiro volume, que vai até 1936, se chama Hubris.
Hitler, Mao, Estaline, Milosevic, Mladic. Conheceu os dois últimos pessoalmente. Podemos vê-los como a encarnação do mal, mas não se pode dizer que fossem loucos ou tivessem distúrbios particulares.
No sentido médico, loucura quer dizer que um indivíduo não é capaz de tomar decisões razoáveis por causa de uma doença mental. Não creio que se possa aplicar às pessoas que referiu. Mas usou outra palavra, mal (evil), que é um termo muito interessante. Amos Oz fala dele e avisa para o facto de, por causa do "politicamente correcto", termos deixado de usar essa palavra. Diz que temos de ser capazes de aceitar que o mal existe para podermos fazer-lhe face. Tentar encontrar explicações para esses casos, que não seja a maldade pura, é um erro. Por vezes, as pessoas agem de forma má e devemos estar preparados para o dizer.
Mladic é uma figura interessante. Era um racista e justificava isso pelo facto de o pai ter sido morto pelos ustachi (milícias fascistas) croatas durante a II Guerra. Odiava os croatas da mesma maneira que odiava os muçulmanos. Um dia, estava a falar comigo e descreveu a sua infância numa aldeia num vale perto de um rio, em frente de outra aldeia muçulmana do outro lado, e como os jovens das duas aldeias lutavam juntos na lama das margens. Quando fui à África do Sul e os afrikaander me diziam que era perfeitamente normal que os miúdos negros brincassem com os miúdos brancos mas que isso não devia pôr em causa o apartheid, lembrei-me dessa conversa. Eles não percebiam que o apartheid era inadmissível. Mladic era como P. W. Botha.
Mas, 16 anos depois de Srebrenica, que é algo que não se pode esquecer, o que sentiu quando ele agora foi preso?
D. O: Um tremendo alívio. Mas, ao fazermos da justiça absoluta a nossa única prioridade, esquecemos a reconciliação. É isso que tem acontecido na Bósnia. E, em situações como esta, em parte guerra civil e em parte guerra de agressão, em que as questões étnicas são dominantes, a reconciliação é fundamental. Houve milhares de pessoas que cometerem crimes. Devemos escolher os principais responsáveis e julgá-los. Como na Alemanha depois da guerra. Com Mladic, tratava-se de genocídio e não se podia virar a página. Agora pode encerrar-se esse capítulo.
A Europa levou quatro anos e 200 mil mortos a actuar na Bósnia. Menos tempo no Kosovo e alguns dias na Líbia. Aprendeu alguma coisa?
D. O: (Risos) Espero que sim. Uma das razões pelas quais escrevi este livro foi para levar as pessoas a pensar o que querem realmente de um líder. Capacidade de decisão e determinação? Capacidade de correr riscos? Outra coisa qualquer? Mas que é preciso estar sempre alerta em relação à hubris. E não só relativamente ao políticos. Esta tremenda crise que estamos a viver também resulta da personificação da hubris dos donos do sistema financeiro. E os políticos têm de ter mais coragem para confrontar os banqueiros. Têm de possuir pelo menos um pouco da bravura de Roosevelt, que enfrentou a crise de 1929, mudando as leis e confrontando-os. Ele disse aquela frase magnífica: "Eles odeiam-me e eu adoro que eles me odeiem". Os políticos não podem gostar tanto de si próprios que achem que toda a gente tem de gostar deles. Não podem ter medo de fazer inimigos.
Não falou de Margaret Thatcher. O problema com o seu país é que todos os primeiros-ministros tentam comparar-se com dois modelos diferentes, o bom e o mau, Churchill e Chamberlain. Sobretudo, quando têm de confrontar-se com a decisão da guerra.
D. O: Chamberlain, ao contrário de Churchill, sofria da síndrome dehubris, porque acreditava que só ele podia lidar com Hitler. Mais ninguém. Afastou todos os outros membros do gabinete que discordavam dele sobre a política de apaziguamento. Chegou à liderança já tarde e nunca tinha passado de um político local. Mas convenceu-se de que só ele era capaz de lidar com Hitler, cara a cara, de homem para homem. Hoje, isso acontece com demasiada frequência, essa ideia de que se resolvem as coisas numa base pessoal. Isso contém um certo perigo para as democracias europeias, onde os primeiros-ministros são poderosos e acham que podem tudo. Sarkozy, por exemplo.
A propósito, François Mitterrand escondeu a sua doença nos anos em que esteve no Eliseu. No livro, reconhece que isso não teve grande influência nos seus mandatos.
D. O: Ele não padecia da síndrome dehubris.
Talvez porque fosse um intelectual...
D. O: Talvez, e era também um homem muito complexo. Mas era, de facto, um intelectual. Em 1993, tentei convencê-lo a ter um encontro com Milosevic. Foi absolutamente brilhante no tratamento que lhe deu, para ver se tentava arrancar-lhe algumas concessões. Nessa altura, o cancro já estava bastante avançado.
Foi prisioneiro de guerra dos alemães e, talvez por isso, nunca criticou abertamente a Sérvia. Disse a Milosevic que era um grande admirador da coragem dos sérvios, disse que precisávamos que essa Sérvia regressasse aos Balcãs. Quando saímos, eu disse a Milosevic que tinha sido um discurso notável. Ele apenas respondeu: "Mas ele não mencionou as sanções". Era tudo o que lhe interessava. Dois homens opostos. Milosevic era completamente indiferente à História e ao apelo de grandeza que lhe estava a ser feito."
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